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Tic-tac

Esse tic-tac dos relógios é a máquina de costura do Tempo a fabricar mortalhas.

 

1. O TEMPO SOB DIVERSAS PERSPECTIVAS

O Tempo é objeto do estudo humano desde os imemoriáveis primórdios. O vocábulo é plurívoco, de farta abrangência.

A inteligência humana se debruça a estudá-lo – o tempo – sob os mais diversos enfoques. Na física, com sucesso, Einstein enunciou sua relatividade, antes visto como absoluto e imutável. Na música, foi cantado como sendo o “tambor de todos os ritmos”[1] e com absoluta razão Cazuza anunciava que ele, a despeito de tudo, não para. Na literatura e na poesia, sob “O Tempo e o Vento” correram-se o fio da vida das famílias Terra e Cambará. Drummond, verberava – sobre os “delicados” – que chega um tempo em que não se diz mais: Meu Deus! Tempo de absoluta depuração[2]…

Os gregos construíram dois vocábulos para designar aspectos distintos do tempo: chronos e kairós. Enquanto chronos nos traduz a ideia de tempo sequencial, quantitativo[3], kairós passou a designar o tempo divino, de enfoque nitidamente qualitativo. O tempo do cronômetro é chronos, mas o tempo da vida é kairós.

Em uma sociedade massificada, absolutamente voltada a produção de riquezas como meio de permitir o consumo desenfreado, o ocaso da vida privada deixou o campo ontológico (dever-ser) e atualmente consubstancia-se no materialismo (ter), de modo que se associa sucesso e felicidade diretamente ao quanto de riquezas um indivíduo conseguiu acumular em vida. Nessa toada, o tempo passa a ser um recurso tão precioso quanto escasso.

2. O TEMPO-JURÍDICO

Porém, para muito além do pujante campo das teorias e das experimentações científicas e filosóficas está a vida dos entes dotados de personalidade jurídica.

O tempo, sob a perspectiva da pessoa natural, é – como costumo dizer – a medida finita da nossa existência. Nascemos, crescemos, amamos e morremos dentro de uma perspectiva definida de tempo e espaço. Parafraseando o saudoso poeta de Alegrete: “quando se vê já são seis horas!”[4]; e, assim, sob o tear do tempo nossa vida passa indiferente, simplesmente, até que, um dia, chega ao fim.

“Nascemos, crescemos, amamos e morremos dentro de uma perspectiva definida de tempo e espaço”

Juridicamente, porém, a passagem do tempo é um fato jurídico, na medida em que tem o condão de criar, modificar e extinguir direitos. Sobre o assunto já escreveu o Professor Pablo Stolze:

“Considera-se fato jurídico em sentido estrito todo acontecimento natural, determinante de efeitos na órbita jurídica. Mas nem todos os acontecimentos alheios à atuação humana merecem este qualificativo. Uma chuva em alto mar, por exemplo, é fato da natureza estranho para o Direito.

Os fatos jurídicos ordinários são fatos da natureza de ocorrência comum, costumeira, cotidiana: o nascimento, a morte, o decurso do tempo”.[5]

Os teóricos da responsabilidade jurídica olvidaram de tratar da responsabilidade civil atraída pela violação indevida do tempo útil – muitas vezes atreladas à conveniência econômica e indevida de um terceiro. Exemplo vívido disso é a empresa que não contrata o número necessário de atendentes e faz com que o consumidor espere excessivamente em seus call centers.

Contudo, considerando a atual tessitura dos fatos sociais, a doutrina e a jurisprudência tem modificado o tratamento dado as agressões ilícitas ao tempo livre, especialmente no âmbito do Direito do Consumidor – mas não só. Nessa toada, as lições do festejado autor Mauricio Dessaune vêm sendo acolhidas com entusiasmo pelos tribunais. Assim o desperdício do tempo passou de um irrelevante jurídico para ser acrescentado ao rol dos direitos da personalidade, ganhando o status de direito subjetivo individual tutelável. É o que nos explica o julgado abaixo colacionado:

APELAÇÃO CÍVEL. CONSUMIDOR. ESPERA DEMASIADA EM FILA DE BANCO. DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR. TEMPO PESSOAL COMO BEM JURÍDICO TUTELÁVEL. DANO MORAL CONFIGURADO.

3. A importância do tempo como capital econômico é relevante tanto para o fornecedor quanto para o consumidor, afinal time is money.

4. Destaca-se doutrina do desembargador fluminense André Gustavo Corrêa de Andrade: Quando está diretamente em jogo um interesse econômico, o tempo desempenha um papel fundamental, como se percebe pela previsão dos juros de mora, da cláusula penal moratória ou, ainda, da possibilidade de indenização por lucros cessantes. No plano dos direitos não patrimoniais, porém, ainda há grande resistência em admitir que a perda do tempo em si possa caracterizar dano moral. Esquece-se, porém, que o tempo, pela sua escassez, é um bem precioso para o indivíduo, tendo um valor que extrapola sua dimensão econômica. A menor fração de tempo perdido de nossas vidas constitui um bem irrecuperável. Por isso, afigura-se razoável que a perda desse bem, ainda que não implique prejuízo econômico ou material, dê ensejo a uma indenização.

5. Nessa linha de pensamento, o autor da teoria do desvio produtivo do consumidor é enfático ao esclarecer: nessas circunstâncias recorrentes de mau atendimento, o consumidor é levado a se afastar de uma atividade que deveria ou desejaria estar realizando – como trabalhar, estudar, consumir, cuidar de si, divertir-se, descansar, estar com entes queridos – para gastar seu tempo e suas competências na tentativa de resolver um problema de consumo ao qual não deu causa, mas que o está sujeitando a algum tipo de prejuízo, potencialmente ou efetivo.[2]

6. Se o proveito econômico dos fornecedores pelo tempo otimizado com a aceitação legal de contratos de adesão e atendimentos eletrônicos, mitigando o direito à informação individualizada, não socorrer também na otimização do tempo do consumidor na realização de seu interesse material, o fornecedor deve arcar com esse desvio de produtividade e pagar pela perda do tempo pessoal, equilibrando-se os direitos e deveres nas relações de consumo.

7. Caracterizado o abuso na espera pela prestação do serviço, o valor compensatório deve ser medido pelo desvio do tempo pessoal despendido até a finalização da prestação devida, ponderando-se a razoabilidade e a proporcionalidade das circunstâncias sociais e econômicas da região.

(TJ-MA – APL: 0281372015 MA 0003090-89.2014.8.10.0060, Relator: LOURIVAL DE JESUS SEREJO SOUSA, Data de Julgamento: 11/02/2016, TERCEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 17/02/2016)

No entanto, malgrado os louváveis avanços teóricos em relação à pessoa natural, ainda não nos deparamos, nem na jurisprudência nem na doutrina, com a conjugação do novel entendimento aos casos em que há agressão injusta ao tempo livre da sociedade de natureza unipessoal, aquelas em que, via de regra, o proprietário é quem desempenha de per si a própria atividade lucrativa da pessoa jurídica.

3. O TEMPO COMO PATRIMÔNIO JURÍDICO SUBJETIVO DA PESSOA JURÍDICA

O conceito de patrimônio jurídico subjetivo é explicado pela doutrina como sendo o conjunto de direitos e obrigações titularizados por determinado ente dotado de personalidade jurídica (art. 1º do Código Civil[6]).

É certo que compreende tanto bens materiais (propriedade, por exemplo), quanto imateriais (direitos da personalidade). No caso específico das pessoas jurídicas, estas também são titulares de direitos da personalidade, contudo em âmbito mais restrito. Isso porque enuncia o Código Civil no seu art. 52 que:

Art. 52. Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade.

Disso se depreende que apenas os direitos imateriais que sejam compatíveis com o ente fictício poderão ser objeto de tutela judicial. Sobre o tema, convém ressaltar que os direitos da personalidade possuem como uma de suas características a não-taxatividade, isto é, o art. 11 e seguintes do Código Civilenunciam rol numerus apertus de direitos, vindo-se a somar todos aqueles outros oriundos do ordenamento jurídico àqueles.

Se o tempo, é a medida finita da personalidade jurídica da pessoa natural, podemos afirmar com igual razão que é a medida finita em que se desenvolve a atividade lucrativa da pessoa jurídica, que emprega os fatores da produção (capital, mão de obra, insumos e tecnologia), no intuito de aferir lucro. De modo que, nos parece claro, caso sofra qualquer investida ilícita a este bem, estar-se-á diante de um dano de ordem material, indenizável nos termos da Lei Civil.

4. OS NOVOS DESAFIOS A CARGO DOS CIVILISTAS

Por ser uma realidade relativamente nova, os civilistas terão instar o Judiciário a se pronunciar em casos que envolvem a usurpação do tempo da atividade empresarial, fazendo-se estender às pessoas jurídicas o novel e justo entendimento aplicado às pessoas físicas.

Os desafios são imensos e neles há indiscutível complexidade. Como, por exemplo, mensurar o quantum indenizatório a ser fixado em situações de desvio produtivo da atividade empresarial? Quais os contornos (mais estreitos em razão da unipessoalidade) do dano reflexo à pessoa física e vice-versa – por que não? – em casos tais?

A resposta teremos somente com os futuros contornos jurisprudenciais, cuja aparição depende do intenso debate e reflexão da matéria.


[1] Excerto de “Oração ao Tempo”, de Caetano Veloso.

[2] Publicado originalmente no livro “Sentimento do Mundo”, Irmãos Pongetti – Rio de Janeiro, 1940. Foram extraídos do livro “Nova Reunião”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 78.

[3] Lembre-se das palavras cronômetro, cronógrafo.

[4] O Tempo, de Mário Quintana.

[5] GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – Parte Geral – Volume 1. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, págs. 345-346.

[6] Art. 1o Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.

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