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INTRODUÇÃO

O tema do presente trabalho é voltado a analisar, do prisma estritamente jurídico, a inconstitucionalidade parcial por omissão operada pelo legislador com o advento da Lei Federal n.º 13.142/2015, que alterou no Código Penal os artigos 121 e 129 e na Lei dos Crimes Hediondos o seu art. 1º.

Trata-se da análise de Lei recente, cuja gênese nos remete às lições do direito constitucional e civil, além do campo propriamente penal. Bem por isso, será dissertado acerca de todos os vieses que permeiam a correta análise do controle de constitucionalidade da citada Lei, sobretudo para que se possa propiciar ao leitor elementos que o permita proceder a um processo hermenêutico à luz da Constituição Federal de 1988.

O estudo visa responder a indagação: A Lei Federal n.º 13.142/2015 padece de vício de inconstitucionalidade a luz do que dispõe a Carta Maior?

Ao nosso entender, a Lei operou distinção desarrazoada e discriminatória ao conter a expressão “consanguíneos”, sobretudo em relação origem da filiação, o que foi expressamente vedado pelo Texto Magno.

O objetivo geral deste trabalho é, portanto, expor as razões pelas quais se entende ser a Lei sub examine parcialmente inconstitucional. O objetivo específico é evidenciar, à luz do texto constitucional, que distinções discriminatórias em relação ao estado de filiação são contrários ao ordenamento jurídico, sobretudo em vistas do art. 227, § 7º da Constituição Federal.

A importância da elaboração do presente estudo pode ser considerada de irrefutável indispensabilidade ao operador do direito, haja vistas que a Lei Federal n.º 13.142/2015 foi promulgada em agosto do corrente ano, sendo, pois, recentíssima e pouco analisada em âmbito científico pela comunidade jurídica. Presta-se, pois, o presente trabalho à uma das primeiras análises sobre o tema.

Metodologicamente este trabalho adotou o tipo de pesquisa bibliográfica como principal fonte de colheita de informações.

Encontra-se dividido em 03 capítulos, o primeiro capítulo trata do direito das modificações operadas pela norma analisada, bem como às críticas doutrinárias oriundas de sua promulgação. O segundo capítulo é dedicado ao direito de famílias, visando introduzir o leitor às nuanças e peculiaridades do tema. O terceiro, por fim, é voltado precipuamente ao Direito Constitucional e à análise da inconstitucionalidade propriamente.

1. ASPECTOS PENAIS

1.1. ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 13.142/2015

Com a vigência da Lei sub examine foi inserido no art. 121, § 2º o inciso VII, com a seguinte redação:

Art. 121. Matar alguém:

Pena – reclusão, de seis a vinte anos.

(…)

Homicídio qualificado

§ 2º Se o homicídio é cometido:

(…)

VII – contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição:

Pena – reclusão, de doze a trinta ano..

O art. 129 também sofreu alterações. Foi inserido o § 12º com a seguinte redação:

Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:

Pena – detenção, de três meses a um ano.

(…)

Aumento de pena

(…)

§ 12. Se a lesão for praticada contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição, a pena é aumentada de um a dois terços.

Por fim, a novel legislação ampliou o rol de crimes hediondos, acrescentando ao art.  da Lei Federal n.º 8.072/1990 novas hipóteses de crimes eivados de hediondez:

Art. 1º […]

I – homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, incisos I, II, III, IV, V, VI e VII);

I-A – lesão corporal dolosa de natureza gravíssima (art. 129, § 2º) e lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3º), quando praticadas contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição.

Foram, portanto, introduzidas importantes modificações na Lei Penal.

1.2. CRÍTICAS DOUTRINÁRIAS

1.2.1. Política de recrudescimento penal

A doutrina teceu pesadas críticas às alterações legislativas promovidas, sustentando a ineficácia da política criminal de recrudescimento de pena. Nesse particular, chama-se atenção ao fato de que a Lei n.º 13.142/2015 teve por substrato factual justamente a necessidade de “punição eficaz[1], indo na contramão dos muitos apontamentos doutrinários em sentido contrário.

Promover a punição eficaz e consequentemente atingir a finalidade da reprimenda penal está umbilicalmente ligada à adequada fase de execução da pena e não com a pena propriamente imposta[2]. Salutares são as palavras de Cláudio do Prado Amaral para quem,

usa-se indevidamente o Direito Penal no ledo engano de estar dando retorno adequado a toda criminalidade moderna, mas que em realidade não faz mais que dar revide a uma reação meramente simbólica, cujos instrumentos utilizados não são aptos para a luta efetiva e eficiente contra a criminalidade[3].

A praxis tem demonstrado isso com distinta crueldade, porquanto a sociedade tem sido duplamente penalizada quando do cometimento de um ilícito penal: tanto na hora de sua pratica de per si, como vítima direta ou indireta, quando ao término do cumprimento da pena imposta, eis que sua execução serviu apenas para, às custas dos cofres públicos, aprimorar o delinquente em suas práticas delituosas ao invés de ajudar na sua recuperação e preparação à reinserção social.

Em verdade, funda-se a lei penal em supostos e pressupostos absolutamente dissociados da realidade fática. A “programação normativa se baseia em uma ‘realidade’ que não existe e o conjunto de agências que deveria levar a cabo essa programação opera de forma completamente diferente”[4].

Acerca das alterações na Lei de Crimes Hediondos, Cezar Roberto Bitencourt, tecendo pioneiros comentários sobre a Lei verberou que:

O legislador brasileiro prossegue em seu desiderato irrefreável de transformar todos os crimes mais graves em crimes hediondos, com todos os consectários que lhes são característicos, no velho estilo de usar simbolicamente o direito penal, como panaceia de todos os males que afligem a sociedade brasileira.

Disso, constata-se que o legislador não compreende bem a diversidade de matérias das quais legisla. Constou do Parecer prévio emitido pelo Senado Federal em relação ao então Projeto de Lei que:

Por fim, também a inclusão das novas figuras penais no rol dos crimes hediondos é medida adequada e que bem corresponde à repulsa da sociedade aos crimes cometidos contra os profissionais que se ocupam da proteção de todos nós.

De fato, é constatável o mau uso – crônico – do Direito Penal pelo legislador pátrio, que quase sempre imbuído de arroubos populistas olvida do seu caráter fragmentário e, desvirtuando sua finalidade, transforma-o em medida de prima ratio da atuação estatal. Por óbvio, esquece-se que agindo desta forma culmina por permitir indevida intervenção estatal sob a liberdade civil. ROXIN ensina que “deve se encontrar um equilíbrio entre o poder de intervenção estatal e a liberdade civil, que então garanta a cada um tanto a proteção estatal necessária como também a liberdade individual possível[5]”.

Não se está a defender a inércia legislativa, tampouco a impunidade àqueles que transgridam a Lei. Porém, imperioso reconhecer a falência da política criminal adotada pelo Pais; o que não se pode admitir, entretanto, é que as deficiências do Estado e o aumento desenfreado da insegurança sejam remedidas com a intensificação do Estado de Polícia. Neste particular, o Estado, no lugar de introduzir elementos de racionalidade nas demandas por mais segurança pública, acaba por alimentá-la em termos populistas (SILVA-SÁNCHEZ, 1999), ao passo que “la legitimidad del poder público exige que la promesa de la seguridad crezca con los riesgos, y sea ratificada ante la opinión pública”[6].

Beccaria nos longínquos idos de 1764 já ensinava que “a certeza de um castigo, mesmo moderado, sempre causará mais intensa impressão do que o temor de outro mais severo, unido à esperança da impunidade […]”[7].

Por fim, encerrando este ponto, impende-nos destacar que a política criminal adotada pelo Estado Brasileiro está muito aquém daquilo que se almeja. As estatísticas não deixam margem às dúvidas. Alguma mudança positiva será experimentada quando o legislador estiver mais comprometido com o bem estar social e menos com interesses politiqueiros de segunda linha. Munhoz Conde disciplina que “educar para a liberdade em condição de ‘não liberdade’ não só é muito difícil, mas também é uma utopia irrealizável nas atuais condições de vida na prisão” (2005, p. 108).

1.2.2. Violação ao princípio da igualdade

Com grande alvoroço se recebeu a vigência da Lei. Muitos verberaram ser ela uma acintosa afronta ao princípio da igualdade insculpido no art. , caput da Constituição Federal.

O argumento-base deste raciocínio breve seria que se estava criando um segmento privilegiado de pessoas, diferente das demais, em que pese supostamente o bem jurídico lesado ser o mesmo (vida e incolumidade física).

Não nos parece acertado tal pensamento. O que pretendeu o legislador ao tratar de forma mais gravosa os crimes cometidos contra os agentes ou autoridades listados no art. 142 e 144 da Constituição foi o de proteger a função exercida pela pessoa e não ela propriamente. Trata-se de qualificadora intuitu funcionae e não intuitu personae. Vale dizer: incide em razão da função e não da pessoa que a ocupa.

Daí acertada a conclusão de que o crime de homicídio cometido contra um policial civil, por exemplo, que estava de folga e cuja motivação não tenha se dado em razão do desempenho funcional, será, a priori, de homicídio simples e não qualificado nos termos do novel inciso VII do § 2º do art. 121 do Código Penal. Neste mesmo sentido, ensina Cézar Bitencourt:

Sintetizando, a presente qualificadora não protege a pessoa da autoridade ou agente da segurança pública, discriminando os demais cidadãos que não desempenhem tais funções, o que poderia gerar suspeita de inconstitucionalidade, por tratá-los diferentemente. A rigor, esta nova qualificadora tutela a função pública desempenhada por essas autoridades. Com efeito, a função pública é o bem jurídico tutelado pela Lei 13.142, de 9 de julho de 2015.[8]

Em verdade, há proteção aos bens jurídicos habituais, porém somados à função pública. Portando, não assiste razão aos argumentos desposados no sentido de violação ao art. , caput da Constituição. Pelo menos, não no sentido criticado.

1.3. REQUISITOS PARA INCIDÊNCIA DA LEI 13.142/2015

1.3.1. Condições especiais da vítima

Para haver incidência in concreto da alteração promovida é necessário que a vítima ostente a qualidade de ser autoridade ou agente descrito no rol dos artigos 142 e 144 da Constituição Federal, integrar o sistema prisional, os quadros da Força Nacional de Segurança Pública ou ostentar a condição de cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até o terceiro grau.

O art. 142 trata acerca das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica). O art. 144, por sua vez, prevê que:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I – polícia federal;

II – polícia rodoviária federal;

III – polícia ferroviária federal;

IV – polícias civis;

V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.

A Lei tutelou também a função e a vida dos guardas municipais e aos agentes de segurança viária. Tal entendimento infere-se da leitura do próprio texto legal, porquanto previu tratamento especial ao agente ou autoridade descritos no art. 142 e 144 da Constituição, mas não limitou-se o legislador àqueles descritos apenas no caput, mas a todo o conteúdo normativo do artigo, o que compreende seus incisos, parágrafos e eventuais alíneas.

As guardas municipais estão descritas no art. 144, não em seu caput, mas sim no § 8º, que tem a seguinte redação:

Art. 144 § 8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.

O mesmo raciocínio acima pode ser aplicado para os agentes de segurança viária, disciplinados no § 10 do art. 144 da CF/88:

§ 10. A segurança viária, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas:

I – compreende a educação, engenharia e fiscalização de trânsito, além de outras atividades previstas em lei, que assegurem ao cidadão o direito à mobilidade urbana eficiente; e

II – compete, no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos respectivos órgãos ou entidades executivos e seus agentes de trânsito, estruturados em Carreira, na forma da lei.

Quanto à abrangência sobredita, Rogério Sanches desposa do mesmo entendimento[9].

Em síntese são estes ou agentes ou autoridades abarcados pela modificação trazida:

  • Forças Armadas;
  • Polícia Federal;
  • Polícia Rodoviária Federal;
  • Polícia Ferroviária Federal;
  • Polícias Civis;
  • Polícias Militares;
  • Corpos de Bombeiros Militares;
  • Guardas Municipais;
  • Agentes de segurança viária;
  • Sistema Prisional
  • Força Nacional de Segurança Pública

Em relação aos familiares, a proteção estende-se aos conjugues, aos companheiros e aos parentes consanguíneos até o terceiro grau. Este conceito abrange:

  • Ascendentes (pais, avós, bisavós);
  • Descendentes (filhos, netos, bisnetos);
  • Colaterais até o 3º grau (irmãos, tios e sobrinhos).

1.3.2. Relação com a função

Não basta o cometimento do crime contra os sujeitos especiais, porquanto não estamos diante de crime intuitu personae, como já repisado. É necessário que haja correlação entre o cometimento do delito e a função ocupada pela vítima. Vejam-se os exemplos:

1. Policial militar é morto durante realização de operações de polícia ostensiva numa determinada comunidade;

2. Delegado da Policia Civil é morto em razão da função que ocupava;

3. Companheiro de Delegado da Policia Federal é morto como represália a ações da polícia judiciária presididas pela autoridade policial.

Nestes, impende-se reconhecer que foram cometidos contra membros ou familiares de integrantes do Sistema de Segurança Pública e em todos os casos perpetrados em razão da função ocupada, de modo que responderão na forma do art. 121, § 2º, VII do Código Penal.

Situação diferente seria caso fosse vítima de homicídio um membro das Forças Armadas, por exemplo, que não estando em serviço, envolve-se em briga de trânsito e acaba vindo a óbito em decorrência de uma briga generalizada. Neste particular, o crime foi cometido sem relação funcional, ainda que a vítima fosse membro do Sistema de Segurança Pública.

1.4. ANALOGIA

Ab initio, a analogia é método de integração normativa[10], cujo objetivo é preencher lacunas havidas no texto legal. A existência desses vazios normativos se justifica na medida em que a lei deve conter expressões genéricas, porquanto se propõe a abarcar um sem número de situações fáticas. Entretanto, pela limitação semântica, ocorrem situações que de tão específicas fogem ao campo de abrangência delimitado pelo texto literal da lei.

Ensina Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 78) que,

efetivamente, sob o ponto de vista dinâmico, o da aplicação da lei, pode ela ser lacunosa, mas o sistema não. Isso porque o juiz, utilizando-se dos aludidos mecanismos, promove a integração das normas jurídicas, não deixando nenhum caso sem solução (plenitude lógica do sistema). O direito estaticamente considerado pode conter lacunas. Sob o aspecto dinâmico, entretanto, não, pois ele próprio prevê os meios para suprir-se os espaços vazios e promover a integração do sistema.

Para esses “vácuos”, temos como meios integrativos a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito[11]. Interessa-nos tratar da analogia, meio de integração que poderia suscitar dúvidas em relação à aplicação das modificações trazidas pela Lei Federal n.º 13.142/2015.

No âmbito penal, segundo Capez (2013, p. 45), a utilização da analogia consiste na aplicação a uma hipótese não regulada por lei disposição relativa a um caso semelhante. Na analogia, o fato não é regido por nenhuma norma, havendo anomia e, por essa razão, aplica-se uma de caso análogo. Nas palavras de Gonçalves (2012, p. 79), para o emprego da analogia requer-se a presença de três requisitos, a saber:

a) inexistência de dispositivo legal prevendo e disciplinando a hipótese do caso concreto;

b) semelhança entre a relação não contemplada e outra regulada na lei;

c) identidade de fundamentos lógicos e jurídicos no ponto comum às duas situações.

A lógica que sustenta a aplicação da analogia é expressa pelo brocardo latino ubi eadem ratio, ibi eadem jus (onde há a mesma razão, aplica-se o mesmo direito). E sua natureza jurídica é de forma de autointegração da lei. Veja-se o exemplo trazido por Capez (2012, p. 49):

O art. 128, II, dispõe que o aborto praticado por médico não é punido “se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”. Trata-se de causa de exclusão da ilicitude prevista exclusivamente para a hipótese de gravidez decorrente de estupro. No entanto, como não se trata de norma incriminadora, mas, ao contrário, permissiva (permite a prática de fato descrito como crime, no caso, o aborto), era possível estender o benefício, analogicamente, à gravidez resultante de atentado violento ao pudor[12].

Art. 128, II do Código Penal

Nenhuma norma

Aborto em gravidez

Decorrente de estupro.

Aborto em gravidez

Decorrente de atentado

violento ao pudor.

ANALOGIA = aplicação do art. 128, II, do CP à hipótese de aborto em gravidez decorrente de atentado violento ao pudor.

1.4.1. Da vedação a analogia in malam partem

Em que pese a priori ser aplicável a todo o ordenamento jurídico é sabido que no âmbito penal moderno, em decorrência do principio da legalidade não é possível a realização de analogia em prejuízo do réu (in malam partem), sob pena de se estar criando, no caso concreto, nova lei penal em seu prejuízo (novatio legis in pejus). Partindo do postulado de que não há crime sem lei anterior que o defina e de que não há pena sem prévia cominação legal, acaso houvesse analogia feita em prejuízo do réu, uma conduta não taxada como crime estaria sendo considerado como tal, ferindo de morte o princípio da legalidade[13].

A própria adoção do princípio da legalidade penal importa em proibição indireta do uso da analogia no âmbito penal. Assim, toda e qualquer analogia feita em âmbito penal[14] deve ser favorável a limitação do ius puniendi estatale a ampliação do ius libertatis, nunca o contrário.

Veja-se interessante julgado do Superior Tribunal de Justiça acerca da vedação à analogia in malam partem, em emblemático caso onde se discutia acerca de sinal de TV a cabo ser considerada energia para fins da configuração do crime de furto:

HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. ALEGAÇÃO DE ILEGITIMIDADE RECURSAL DO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. INTERCEPTAÇÃO OU RECEPTAÇÃO NÃO AUTORIZADA DE SINAL DE TV A CABO. FURTO DE ENERGIA (ART. 155, § 3 º, DO C Ó DIGO PENAL). ADEQUAÇÃO TÍPICA NÃO EVIDENCIADA. CONDUTA TÍPICA PREVISTA NO ART. 35 DA LEI 8.977⁄95. INEXISTÊNCIA DE PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. APLICAÇÃO DE ANALOGIA IN MALAM PARTEM PARA COMPLEMENTAR A NORMA. INADMISSIBILIDADE. OBEDIÊNCIA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ESTRITA LEGALIDADE PENAL. PRECEDENTES. O assistente de acusação tem legitimidade para recorrer de decisão absolutória nos casos em que o Ministério Público não interpõe recurso. Decorrência do enunciado da Súmula 210 do Supremo Tribunal Federal. O sinal de TV a cabo não é energia, e assim, não pode ser objeto material do delito previsto no art. 155, § 3º, do Código Penal. Daí a impossibilidade de se equiparar o desvio de sinal de TV a cabo ao delito descrito no referido dispositivo. Ademais, na esfera penal não se admite a aplicação da analogia para suprir lacunas, de modo a se criar penalidade não mencionada na lei (analogia in malam partem), sob pena de violação ao princípio constitucional da estrita legalidade. Precedentes. Ordem concedida. (HC n. 97.261⁄RS, Ministro Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJe 2⁄5⁄2011 – grifo nosso)

Destarte, em âmbito penal eventuais omissões legislativas serão interpretadas como vontades negativas do legislador, isto é, entende-se que deliberadamente optou-se por não prever determinada expressão no texto legal, impondo-se a não possibilidade de utilização de métodos de integração normativa para preencher eventuais lacunas. No ponto, leciona Greco:

Em matéria penal, por força do princípio da reserva, não é permitido, por semelhança, tipificar fatos que se localizam fora do raio de incidência da norma, elevando-os à categoria de delitos. No que tange às normas incriminadoras, as lacunas, porventura existentes, devem ser consideradas como expressões da vontade negativa da lei. E, por isso, incabível se torna o processo analógico. Nestas hipóteses, portanto, não se promove a integração da norma ao caso por ela não abrangido. [15]

Opinião diversa sustenta Marco Antonio Santos Reis[16], para quem é possível proceder-se a interpretação conforme a Constituição do texto da Lei Federal 13.142/2015, para, abarcando o princípio da igualdade da filiação, expender o tratamento penal gravoso também àqueles que praticarem os crimes lá previstos contra os filhos oriundos de relação civil. Veja-se:

Imperioso registrar, ainda, a infelicidade do legislador na expressão ‘parentesco consanguíneo’, o qual, por seu turno, deve receber uma interpretação conforme a Constituição para incluir o parentesco civil em homenagem ao disposto no art. 227, parágrafo 6º da Constituição da República. A lógica estrita da legalidade vê aqui, contudo, um caso de proibição de uso da analogia ou da interpretação extensiva, uma vez que o próprio legislador utilizou o vocábulo ‘consanguíneo’ de maneira explícita. A inconstitucionalidade da distinção, porém, autoriza, no limiar do atendimento à finalidade da Lei maior, a interpretação extensiva neste caso sem causar espécie.

Data maxima vênia, não nos parece acertado tal entendimento. Conforme ficou demonstrado, as omissões insertas nas leis penais afiguram-se à vontade negativa do legislador, de modo que acaso se procedesse à interpretação conforme a Constituição e, com isso, se estendesse a aplicação da Lei aos ditames do art. 227, § 6º da Constituição, estaria o Poder Judiciário atuando como legislador positivo, sobrepondo a vontade do Poder Legislativo pela sua. Tal conduta claramente afronta o Princípio da Separação dos Poderes.

Não nos parece igualmente válido que sob a égide da fase garantista do direito penal se possa operar analogia in malam partem sob o pretexto de garantir efetividade à Constituição, sobretudo porque no próprio Texto Maior há garantia de que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal, vide art. 5º, XXXIX.

Neste particular, note-se que os direitos fundamentais, embora não sejam absolutos, possuem efeitos erga omnes, em especial contra intervenções estatais sob a gama de direitos dos administrados. É ínsito ao próprio movimento constitucionalista a imposição de abstenções estatais frente ao patrimônio jurídico dos indivíduos. Do contrário, tolerando-se a possibilidade de interpretação conforme a Constituição permitir-se-ia o avanço do ius puniendi estatal em detrimento do ius libertatis, obliterando-se por completo o postulado da legalidade.

Diante disso, ao prever a expressão “consanguíneos”, limitando a abrangência da norma penal a esta estirpe de filiação, o legislador atuou segundo sua vontade, operando distinção volitiva deliberada. Pensemos na seguinte hipótese: Paulo é um policial militar e possui dois filhos, sendo um deles José, seu filho consanguíneo e o outro Pedro, seu filho adotivo. Ricardo, criminoso que possui desavença com Paulo em decorrência de sua condição de policial militar decide vingar-se e acaba matando seus dois filhos, em duas ações distintas, porém idênticas, valendo-se do mesmo modus operandi. Neste caso, responderá Ricardo, em concurso material, por um homicídio simples e outro qualificado, na forma do art. 121, § 2º, VII do Código Penal.

Temos, portanto, que duas condutas que ofendem o mesmo bem jurídico – vida e função pública, como defendemos -, de pessoas juridicamente idênticas, considerado o teor do disposto no art. 226, § 7º da Constituição Federal, têm o condão de ensejar situações jurídicas díspares, ao passo em que o preceito sancionar do tipo previsto no caput do art. 121 caput é de reclusão de 06 a 12 anos e no art. 121, § 2º, VII também a reclusão, mas com quantum da pena variando de 12 a 30 anos.

1.5. DA APLICABILIDADE DA LEI 13.142/2015

Malgrado a clara inconstitucionalidade da expressão “consanguíneos” inserta na alteração legislativa promovida, impende-nos reconhecer a vigência do princípio da presunção de constitucionalidade das leis, derivado diretamente da Teoria de Separação dos Poderes, formulada por John Locke. Ao Poder Judiciário, intérprete qualificado das Leis e guardião da Constituição, toda atividade voltada ao controle de constitucionalidade deve ser exercido com extrema cautela, porquanto teoricamente a norma jurídica representa a manifestação e aprovação da população popular, haja vista o disposto no art. , parágrafo único da Constituição. Como ensina Luís Roberto Barroso (1998, p. 164):

A presunção de constitucionalidade das leis encerra, naturalmente, uma presunção iuris tantum, que pode ser infirmada pela declaração em sentido contrário do órgão jurisdicional competente […]. Em sua dimensão prática, o princípio se traduz em duas regras de observância necessária pelo intérprete e aplicador do direito:

(a) não sendo evidente a inconstitucionalidade, havendo dúvida ou a possibilidade de razoavelmente se considerar a norma como válida, deve o órgão competente abster-se da declaração de inconstitucionalidade;

(b) havendo alguma interpretação possível que permita afirmar-se a compatibilidade da norma com aConstituiçãoo, em meio a outras que carreavam para ela um juízo de invalidade, deve o intérprete optar pela interpretação legitimadora, mantendo o preceito em vigor.

Somente como medida de ultima ratio deve-se expurgar do ordenamento jurídico a norma tida por inconstitucional. Ainda assim, não se faz necessária a declaração de inconstitucionalidade de todo o dispositivo, sendo perfeitamente possível a declaração de inconstitucionalidade parcial da norma, posto que a aferição da validade da norma é feita dispositivo por dispositivo, matéria por matéria, e não em bloco, globalmente. Para Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2013, p. 772),

no Brasil, a declaração da inconstitucionalidade parcial pelo Poder Judiciário poder recair sobre fração de artigo, parágrafo, inciso ou alínea, até mesmo sobre uma única palavra de um desses dispositivos da lei ou ato normativo.

Desse modo, ainda que reproduza grave injustiça, somente poderão responder nos termos da Lei Federal n.º 13.142/2015 aqueles que ceifarem vidas de filhos consanguíneos das autoridades listadas no art. 142 e 144 da Constituição Federal, porquanto, como já visto, não é possível a realização da analogia para agravar a situação jurídica do réu.

Entretanto, inferimos que a declaração de inconstitucionalidade parcial não poderá subverter a mens legis, mudando o sentido e o alcance da norma, sob pena de ofensa ao princípio da separação dos poderes, que impede atue o Poder Judiciário na condição de legislador positivo.

No que toca ao escopo de análise do presente trabalho, entendemos ser perfeitamente possível a declaração de inconstitucionalidade parcial do dispositivo inserido no art. 121, § 2º, VII do Código Penal, porquanto resta evidente que o bem jurídico tutelado pelo dispositivo é a vida e não a natureza da relação de parentesco havido entre as autoridades listadas nos artigos 142 e 144 da Constituição.

O objetivo do legislador foi instituir reprimenda qualificada àqueles que ceifam vidas e a expressão “consanguíneos”, presume-se, não passa de um resquício arcaico que ainda vive no subconsciente social de que somente são dignos aqueles. Em suma, não altera o sentido, nem subverte seu alcance, a supressão da palavra.

A inconstitucionalidade da expressão “consanguíneos”, opera desarrazoada discriminação em relação aos filhos adotivos, ainda que entre eles e os sanguíneos não haja diferença jurídica ao passo em que o grau de reprovabilidade da conduta de “matar alguém” em face de filho sanguíneo ou adotivo é de mesmo grau, altíssima, não se justificando diferenças em relação ao quantum de pena ofertada pelo Estado ao agressor.

2. DO DIREITO DE FAMÍLIAS

Indubitavelmente a família é a base da sociedade. É sua celula mater. O primeiro e o último grupo social de um indivíduo, que o acompanha do nascimento até sua morte. Nas palavras de Vara (1996, p.08): “a família constitui o primeiro, o mais fundante e o mais importante grupo social de toda a pessoa, bem como o seu quadro de referência, estabelecido através das relações e identificações”.

Seus membros são ligados por laços duradouros e dentro da instituição familiar se sentem aptos a realizar seus projetos de vida. A família é uma unidade geradora de afeto, proporciona segurança e aceitação pessoal, permitindo o desenvolvimento natural da pessoa; proporciona a satisfação e o sentimento de utilidade, por meio das atividades que satisfazem os membros da família; é asseguradora da continuidade das relações, propiciando o vínculo permanente entre os familiares; proporcionadora de estabilidade e socialização; impositora da autoridade e do sentimento do que é correto, por meio da aprendizagem de regras e normas sociais, direitos e obrigações inerentes às sociedades humanas.

Dada sua importância, o constituinte pátrio dispôs que “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”[1].

2.1. DE ROMA À ATUALIDADE

Em sucinta digressão histórica, calha explicar o conceito de família a partir das origens que interessam ao presente estudo. Nessa senda, segundo Orlando Gomes:

A evolução jurídica da família importa, entre os povos de nossa área cultural, a partir de Roma. O direito romano deu-lhes estrutura inconfundível, tornando-a unidade jurídica, econômica e religiosa fundada na autoridade soberana de um chefe.[2]

A configuração da família romana era bastante diferente da que concebemos hoje. Cabe-nos, pois, destacar que a família em Roma não se encontrava unicamente ligada pelos vínculos consanguíneos, antes senão em razão do culto. A família enquanto grupo social era a garantidora da manutenção do culto familiar, sendo irrelevante a relação de parentesco sanguíneo. Isso porque a ligação que se pretendia na antiguidade era mais poderosa do que a oriunda do nascimento: a religião doméstica e o culto aos antepassados. Malgrado pudesse haver – e havia – a existência do afeto, tal fato de menor relevância para a configuração da associação familiar. Era, então, a família antes de tudo uma associação religiosa.

A estrutura familiar romana era tipicamente patriarcal. Ao pater familias cabia a posição de chefia do grupamento, tanto que o vocábulo etimologicamente se adequa mais a figura propriamente de “chefe” do que de “pai”. À mulher cabia seguir o culto dos antepassados do marido, o que a fazia abandonar seu culto familiar originário.

Quando da Idade Média, o conceito de família sofreu forte influência do Direito Canônico. A Igreja criou um conjunto de normas jurídicas próprias – os cânones – de modo a diferenciar suas leis daquelas produzidas pelo Estado. A família foi objeto da edição de inúmeras normas canônicas e isso em muito influenciou o ordenamento jurídico moderno. Exatamente neste sentido é que Orlando Gomes (2002) afirma que na organização jurídica da família moderna é ainda mais decisiva a influência do direito canônico do que as normas e os costumes de Roma, porquanto:

Para o cristianismo, deve a família fundar-se no matrimônio, elevado a sacramento por seu fundador. A igreja sempre se preocupou com a organização da família, disciplinando-a por sucessivas regras no curso de dois mil anos de sua existência, que por largo período histórico vigoraram, entre os povos cristãos, como seu exclusivo estatuto matrimonial. Considerável, em consequência, é a influência do direito canônico na estruturação jurídico do grupo familiar.

Ainda sobre a influência do direito canônico na família moderna, segue o mesmo autor:

Assinala-se tanto na determinação das condições para o casamento como de seus efeitos jurídicos e de sua dissolução. É de origem canônica a doutrina dos impedimentos matrimoniais […]. Aos canonistas devem-se os princípios e as noções relativas à nulidade do matrimônio. A forma solene de celebração do casamento e o princípio do consensualismo aplicado aos nubentes decorrem das práticas adotadas pela Igreja. A posição mais favorável da mulher na sociedade conjugal […]. A proibição de reconhecimento dos filhos adulterinos e incestuosos, mantida na maioria dos Códigos modernos, provém da condenação da Igreja às uniões sexuais de que provêm esses filhos. Por sua influição, abrandou-se, porém, a condição dos bastardos, admitida sua legitimação por subsequente matrimônio […]. A indissolubilidade do vínculo do casamento, o instituto da separação de corpos, denominado, entre nós de desquite, pelo qual se dissolve a sociedade conjugal sem quebra do vínculo matrimonial.

Decorrência disso, tradicionalmente pensa-se e identifica-se a família com a noção de casamento, quase como uma conditio sine qua non. Culturalmente, mutatis mutandis, ainda há forte tendência em idealizar a família como sendo necessariamente o agrupamento social composto do pater familias ocupando a figura central da entidade familiar, ao lado da esposa e dos filhos em importância subsidiária. Essa visão hierarquizada já não mais perdura em nossos tempos. Ocorreram mudanças históricas significativas de hábitos e culturas, de modo que se impôs reestruturar a ideia da instituição familiar, até mesmo como medida natural de readequação à marcha histórica da sociedade.

Parte nuclear dessa mudança evolutiva decorreu da cisão havida entre o Estado e a Igreja, a emancipação e inclusão feminina no mercado de trabalho, a divisão das tarefas domésticas e do ônus financeiro familiar entre os conjugues, a luta feminista pela diminuição das desigualdades de gênero e etc. Gradativamente foi sendo redesenhada a estrutura familiar e os papeis desempenhados por cada membro foram se diversificando.

Porém, em que pese a mudança social da configuração familiar, em razão do apego legislativo às tradições durante muitos anos o ordenamento jurídico impôs grave ônus àqueles que optaram por um modelo de família diferente do considerado tradicional e com o passar dos anos as inserções legislativas que objetivaram diminuir as discriminações legais foram de tal modo tímidas que não serviram para dignificar a vida dos marginalizados.

A primeira vez em que a Lei definiu família atendendo a seu perfil contemporâneo – diga-se sobrelevando à categoria nuclear do conceito o afeto – foi com a Lei Federal n.º 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, que buscando coibir a violência doméstica e familiar em desfavor da mulher identificou como família qualquer tipo relação íntima de afeto, vide art. 5º, II.

João Baptista Villela in Repensando o direito de família, p. 20, de maneira ímpar enuncia que:

É necessário ter uma visão pluralista da família, que abrigue os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar o elemento que permite enlaçar no concei­to de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independentemente de sua conformação. Esse referencial só pode ser identificado no vínculo que une seus integrantes. É o envolvimento emocional que leva a subtrair um relacionamento do âmbito do direito obrigacional – cujo núcleo é a vontade – para inseri-lo no direito das famílias, que tem como elemento estru­turante o sentimento do amor que funde as almas e confunde patrimônios, gera responsabilidades e comprometimentos mútuos.

Eis aí o limiar havido entre o direito obrigacional e o familiar: enquanto os negócios tem por fundamento a vontade dos contratantes, a base do direito de família é o afeto (DIAS, 2013). Bem por isso, o novo modelo estrutural da família deixou de estar fundado no casamento do homem com a mulher e passou a ter por base a afetividade, a pluralidade e o eudemonismo, deixando a família de ser um fim em si mesma para se tornar um instrumento da realização de felicidade e afeto de seus membros. Esse entendimento ficou bastante assente no Julgado do Superior Tribunal de Justiça, no REsp. 1.183.378/RS, cujo Relator foi o Ministro Luis Felipe Salomão:

Inaugura-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito de família e, consequentemente, do casamento, baseada na adoção de um explícito poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado ‘família”, recebendo todos eles a”especial proteção do Estado”. Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento, diferentemente do que ocorria com os diplomas superados -, deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade.

Do contrário, adotando uma visão restrita de família, estaremos condenando muitos à marginalização dos seus relacionamentos, ao estigma social das designações impróprias e discriminatórias, a exclusão de direitos e a negação do princípio da dignidade da pessoa humana, que segundo Kant é calcada na ideia de finalidade (o homem como fim e não como meio) e da autonomia da vontade. Nesse ponto, de salutar importância a interpretação que Fábio Konder Comparato (2006) faz do filósofo alemão:

Ademais, disse o filósofo, se o fim natural de todos os homens é a realização de sua própria felicidade, não basta agir de modo a não prejudicar ninguém. Isto seria uma máxima meramente negativa. Tratar a humanidade como um fim em si implica no dever de favorecer, tanto quanto possível, o fim de outrem. Pois, sendo o sujeito um fim em si mesmo, é preciso que os fins de outrem sejam por mim considerados também como meus.

2.2. A FAMÍLIA NO DIREITO PÁTRIO

O vocábulo “família” é usado em diferentes sentidos e em amplitudes diversas. Ora se está a falar em sentido estrito, ora em sentido amplo. A maioria dos grandes civilistas tradicionais enxergam a família como sendo o conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo da consanguinidade (BEVILÁQUA, 2001).

Silvio Venosa entende que,

importa considerar a família em um conceito amplo, como parentesco, ou seja, o conjunto de pessoas unidas por vínculo jurídico de natureza familiar. Nesse sentido, compreende os ascendentes, descendentes e colaterais do conjugue, que se denominam parentes por afinidade ou afins. Nessa compreensão, inclui-se o cônjuge, que não é considerado parente. Em conceito restrito, família compreende somente o núcleo formado dos pais e filhos que vivem sob o pátrio poder.[3]

No mesmo sentido Caio Mário da Silva Pereira aduz que,

[…] em sentido genérico e biológico, família é o conjunto de pessoas que descendem de tronco ancestral comum. Em sentido mais estrito, a família é considerada o conjunto de pessoas unidas pelos laços do casamento e da filiação. Durante séculos, fora ela um organismo extenso e hierarquizado, mas sob a influência da lei da evolução, retraiu-se para se limitar a pais e filhos. [4]

Para Carlos Roberto Gonçalves,

[…] a família é uma realidade sociológica e constitui a base do Estado, o núcleo fundamental em que repousa toda a organização social. Em qualquer aspecto em que é considerada, aparece a família como uma instituição necessária e sagrada, que vai merecer a mais ampla proteção do Estado.[5]

No campo sociológico podemos designar família como sendo um agrupamento informal de pessoas, cuja gênese se dá de forma espontânea em sociedade. Decorre de um fato natural, traduzido na tendência humana de união entre semelhantes, seja pelo instinto biológico de perpetuação da espécie ou mesmo pela aversão à vida solitária (DIAS, 2013).

No que concerne ao atual direito civil constitucional, o conceito tradicional de família sofreu ampliação. Com a Constituição Federal fora expressamente reconhecida a família monoparental, conforme dicção do art. 226, § 4º: “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”[6], bem como a oriunda da união estável, prevista no § 3º do mesmo artigo: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”[7].

Em âmbito constitucional, é de se notar que a Constituição de 1988 operou significativa mudança no âmbito do direito de família. De acordo com o magistério de Maria Berenice Dias (2013), a Carta Política:

Estendeu proteção à família constituída pelo casamento, bem como à união estável entre o homem e a mulher e à comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, que recebeu o nome de família monoparental. Consagrou a igualdade dos filhos, havidos ou não do casamento ou por adoção, garantindo-lhes os mesmos direitos e qualificações. Essas profundas modificações acabaram derrogando inúmeros dispositivos da legislação então em vigor, por não recepcionados pelo novo sistema jurídico. Como lembra Luiz Edson Fachin, após a Constituição, o Código Civil perdeu o papel de lei fundamental do direito de família.

Operaram-se, também, importantes distinções em âmbito da dissolução do vínculo conjugal, que deixou de ser monopólio do Poder Judiciário e a não ter prazos ou condições prévias, além da vontade dos casados[8].

Entretanto, não devemos somente às normas constitucionais positivadas a quebra de paradigmas em relação à família no Direito brasileiro. Os princípios que delimitam a atuação hermenêutica e jurisdicional insculpidos na Carta Maior possibilitaram que, efetivamente, se reconhecesse e se fizesse cumprir os mandamentos convergentes com o princípio do pluralismo familiar.

De todo modo, nos parece forçoso e lógico que tais mudanças paradigmáticas ocorreram muito tempo após o reclamo da sociedade. E nisso reside a grande discussão acerca da relação dual entre a família e o Direito enquanto conjunto de normas que regulam a vida em sociedade A realidade factual é por demais complexa. O emaranhado de relações humanas é incontável e a realidade é dinâmica e espontânea. O Direito, neste ponto, está fadado a estar sempre aquém das mudanças, a atuar a posteriori, reconhecendo e conferindo juridicidade às novas situações de fato que originalmente não se amoldam ou não são reconhecidas à luz das normas jurídicas até então instituídas.

Sua função precípua é trazer paz ao meio social através da instituição de normas de condutas, que devem ser compulsoriamente praticadas por todos os membros de um determinado grupo. O Direito atua, portanto, sob os fatos ditos “jurídicos” e estes são, nas palavras de Pontes de Miranda, situações de fato que o legislador “carimba”, transformando-as em normas jurídicas por meio do estabelecimento de sanções, ou seja, o direito adjetiva os fatos e aí eles passam a ser considerados propriamente jurídicos (MIRANDA, 2004).

Desse modo, embora possa se pensar que o Direito abarca a totalidade de relações, conforme já dito, acaba por estar, mesmo diante de sua mutabilidade, fadado a atuar após, por isso a família juridicamente regulada jamais corresponderá à família natural, que preexiste ao Estado e está acima do direito (DIAS, 2013).

Ilustrando o sobredito, apesar da formação social de diferentes tipos de famílias, o Código Civil de 1916 reconhecia que a família dita “legítima” era somente aquela constituída por meio do casamento[9]. Evidencia-se uma forte característica do poder legiferante brasileiro: o alto grau de conservadorismo e o apego desmedido às tradições ainda que isso represente a perpetuação de seculares e infames injustiças. Exemplo disso constava acerca da dissolução do casamento, que na redação original do parágrafo único do art. 315 do Código Civil de 1916 era proibida[10], além das denominações discriminatórias à união de pessoas sem vínculo matrimonial e, principalmente, aos filhos havidos dessas relações[11].

A opção legislativa em taxar pejorativamente os vínculos extramatrimoniais e o estado ilegítimo de filiação tinha claramente o objetivo de punir aqueles que desafiavam a instituição familiar consagrada e juridicamente servia apenas para operar a exclusão de direitos patrimoniais, na pérfida e vã tentativa de conservar a família tal e qual concebida à época.

Com o advento do Código Civil de 2002, cujo projeto data de 1975, ocorreram mudanças importantes no âmbito do Direito de Famílias, no entanto, muito aquém do que se esperava. Maria Berenice Dias (2013, p. 30) ensina que o maior mérito do novel codex foi sepultar “dispositivos que já eram letra morta e que retratavam ranços e preconceitos, como as referências desigualitárias entre o homem e a mulher, as adjetivações da filiação, o regime datal etc”. No ponto, destaca-se que a Constituição Federal não havia recepcionado muitos destes dispositivos do Código Civil de 1916, servindo a novel codificação apenas para retirar expressamente do ordenamento jurídico a letra da lei já morta.

Ainda assim, passado tantos anos, há forte tendência de se conceituar de modo estrito o que é, juridicamente, uma “família”. O melhor exemplo disto é o Projeto de Lei intitulado de Estatuto da Família que tramita hoje no Congresso Nacional e que em breve poderá virar Lei Ordinária. Segundo a proposta, família seria o “núcleo formado a partir da união entre homem e mulher”, excluindo-se os relacionamentos homoafetivos, as famílias monoparentais e demais configurações familiares existentes.

Trata-se de malfadado intento legislativo, verdadeira intervenção estatal autoritarista no âmbito da vida privada. O legislador, uma vez mais, anda na contramão dos avanços constitucionais, demonstrando claramente que a produção normativa nacional está mais quedada a atender aos espúrios interesses politiqueiros daqueles que desconhecem o significado do conviver – viver junto – do que com o cumprimento da Constituição, sobretudo porque restringir o conceito da instituição familiar é negar a dignidade àqueles que não se amoldam ao conceito de família como quer o legislador, sem contar que o que deveria ser meio para a realização da vida de um indivíduo (a família), passa a ser um fim em si mesmo; absolutamente o inverso do que deveria ser.

Não se olvide que permitir determinados avanços do Poder Público na esfera da intimidade abre campo fértil a intentos antidemocráticos. O compromisso do legislador não está em atender a Constituição Federal nem aos reclamos sociais.

Em enquete realizada pela Câmara dos Deputados, 5.307.905 pessoas votaram que não concordam com a conceituação legal (51,62%), ao passo que 4.944.827 (48,09%) votaram a favor e 29.338 (0,29%) disseram não ter opinião formada sobre a questão. Caio Mário Pereira ensina que:

“Quem pretende focalizar os aspectos ético-sociais da família, não pode perder de vista que a multiplicidade e variedade de fatores não consentem fixar um modelo social uniforme”. [12]

Evidente que o microssistema jurídico do direito das famílias é composto por normas de ordem pública, inderrogáveis e indisponíveis. Entretanto, tal característica não lhe retira o caráter eminentemente privado, que pudesse justificar pudesse o Estado ditar normas e conceitos. Neste sentido:

Imperioso reconhecer que o direito das famílias, ainda que tenha características peculiares e alguma proximidade com o direito público, tal não lhe retira o caráter privado. A tendência é reduzir o intervencionismo do Estado nas relações interpessoais. A esfera privada das relações conjugais se inclina cada vez mais a repudiar a interferência do público. Para Rodrigo da Cunha Pereira, o Estado não pode mais controlar as formas de constituiçãodas famílias (…) ela é mesmo plural. Como as mais diversas conformações de convívio passaram a ser aceitas pela sociedade, tal revela a liberdade dos sujeitos de constituírem a família da forma que lhes convier, no espaço de sua liberdade. [13]

Hodiernamente, ao menos no campo sociológico, podemos afirmar que o conceito de família majoritariamente já superou os paradigmas do passado, na medida em que foi erigido a categoria nuclear do conceito não mais a consanguinidade ou a legitimidade ou ilegitimidade da relação havida ou até mesmo o sexo dos cônjuges, e sim o afeto que permeia e verdadeiramente transforma um dado grupo social na celula mater da sociedade. Segundo Maria Berenice Dias:

Surgiu um novo nome para essa tendência de identificar a família pelo seu envolvimento efetivo: família eudemonista, que busca a felicidade individual vivendo um processo de emancipação de seus membros. O eudemonismo é a doutrina que enfatiza o sentido de busca pelo sujeito de sua felicidade. A absorção do principio eudemonista pelo ordenamento altera o sentido da proteção jurídica da família, deslocando-o da instituição para o sujeito, como se infere da primeira parte do § 8º do art. 226 da CF: o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos componentes que a integram.[14]

Nesta senda, tentando acompanhar a evolução de famílias, falemos de alguns tipos de família, sem que, no entanto, tenhamos a pretensão de abordar todas.

2.3. TIPOS DE FAMÍLIAS

2.3.1. Família homoafetiva

É a entidade familiar formada pela união entre duas pessoas de mesmo sexo, que mantenham convivência pública, contínua, duradoura, com objetivo de constituição de família.

Silvio de Salvo Venosa (2010) não reconhece a união homoafetiva como passível da proteção constitucional direcionada à família, reconhecendo apenas a possibilidade de que sejam resguardados os direitos patrimoniais decorrentes do relacionamento, no campo do direito obrigacional e tão só. Explica o civilista:

O relacionamento homossexual, modernamente denominado homoafetivo, por mais estável e duradouro que seja, não receberá a proteção constitucional e, consequentemente, não se amolda aos direitos de índole familiar criados pelo legislador ordinário. Eventuais direitos que possam decorrer dessa união diversa do casamento e da união estável nunca terão, ao menos no atual estágio legislativo, cunho familiar real e verdadeiro, situando-se, acentuadamente no campo obrigacional, no âmbito de uma sociedade de fato.[15]

Maria Berenice Dias (2013), em sentido oposto e com a sabedoria que lhe é peculiar, assegura que:

Ora, a nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto pode-se deixar de conferir status de família, merecedora da proteção do Estado, pois a Constituição (art. 1º, III) consagra, em norma pétrea, o respeito à dignidade da pessoa humana.

Por fim, acompanhando as novas correntes doutrinárias, rendeu-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que passou a reconhecer a possibilidade de que as uniões homoafetivas sejam consderadas uniões estáveis, com iguais direito e deveres. Partindo dessa decisão, o Superior Tribunal de Justiça passou a admitir a habilitação para o casamento diretamente no Registro Civil e o Conselho Nacional de Justiça, diante da negativa de alguns oficiais de registro em formalizar o processo de habilitação, emitiu a Resolução 175/2013, proibindo a negativa.

2.3.2. Família unipessoal

É aquela composta por apenas uma pessoa. É o que se extrai do entendimento sumulado pelo STJ no enunciado n.º 364: “O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas”.

No Recurso Especial n.º 139.012, o relator Ministro Ari Pargendler teve por bem considerar que o imóvel de uma pessoa, ainda que solteira no momento da ação de cobrança e que depois vem a casar-se, continua sendo impenhorável. O ministro ponderou que no momento da penhora no imóvel já havia unidade familiar, ampliando, portanto, o conceito de impenhorabilidade a família de uma só pessoa.

2.3.3. Família pluriparental

Formada pela reconstrução de entidades familiares originárias que foram desfeitas. Segundo Maria Berenice Dias:

A especificidade decorre da peculiar organização do núcleo, reconstruído por casais onde um ou ambos são egressos de casamentos ou uniões anteriores. Eles trazem para a nova família seus filhos e, muitas vezes, têm filhos em comum. É a clássica expressão: os meus, os teus, os nossos.[16]

A família pluriparental resulta de um mosaico de relações anteriores (DIAS, 2007, p. 47).

2.3.4. Família anaparental

Resulta da união de pessoas ligadas entre si por vínculos de parentesco que não sejam de ascendência ou descendência, tal como a família formada por dois irmãos que residam juntos, pelos tios e sobrinhos e etc. Ou mesmo a união constituída por pessoas sem laços de parentesco.

A convivência entre parentes ou entre pessoas, ainda que não parentes, dentro de uma estruturação com identidade de propósito, impõe o reconhecimento da existência de entidade familiar batizada com o nome de família anaparental.[17]

2.3.5. Família paralela

É aquela que desafia a monogamia, onde um dos conjugues participa de duas ou mais famílias nessa condição.

Os relacionamento paralelos, além de receberem denominações pejorativas, são condenados à invisibilidade. Simplesmente a tendência é não reconhecer sequer sua existência. Somente na hipótese de a mulher alegar desconhecimento da duplicidade das vidas do varão é que tais vínculos são alocados no direito obrigacional e lá tratados como sociedades de fato. Uniões que persistem por toda uma existência, muitas vezes com extensa prole e reconhecimento social, são simplesmente expulsas da tutela jurídica. (…) Negar a existência de famílias paralelas – quer um casamento e uma união estável, quer duas ou mais uniões estáveis – é simplesmente não ver a realidade.[18]

Data maxima venia, ousamos discordar do nome conferido a essa entidade familiar. A nosso sentir “paralela” designa conceito de relação, de modo que há necessidade lógica de haver uma família “principal”. O que há, em verdade, é a existência de duas famílias, ambas hipoteticamente com igual importância.

2.3.6. União estável

É entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. A união estável estende-se também aos casais homoafetivos, vide ADI n.º 4277 e a ADPF n.º 132.

2.4. NOÇÕES GERAIS DE FILIAÇÃO

2.4.1. Conceito de filiação

Nos dizeres de Carlos Roberto Gonçalves:

Filiação é a relação de parentesco consanguíneo, em primeiro grau e em linha reta, que liga uma pessoa àquelas que a geraram, ou a receberam como se a tivessem gerado. Todas as regras sobre parentesco consanguíneo estruturam-se a partir da noção de filiação, pois a mais próxima, a mais importante, a principal relação de parentesco é a que se estabelece entre pais e filhos.[19]

Para Flávio Tartuce (2014):

A filiação pode ser conceituada como sendo a relação jurídica decorrente do parentesco por consanguinidade ou outra origem, estabelecida particularmente entre os ascendentes e descendentes de primeiro grau. Em suma, trata-se da relação jurídica existente entre os pais e os filhos.

Podemos afirmar, pois, que a filiação é a relação de parentesco em linha reta descendente de primeiro grau. O Código Civil prevê no seu art. 1.593 que o parentesco é natural ou civil, conforme resultar de consanguinidade ou outra origem. Vejamos detidamente a questão.

2.4.2. Tipos de filiação no atual cenário jurídico

2.4.2.1. Filiação natural

Estar-se-á diante da filiação natural quando o nascituro possuir material genético oriundo do seu respectivo pai e mãe.

A forma da concepção, contudo, pode ser natural ou artificial, conforme se dê por meio da relação sexual ou outras formas de concepção. A filiação natural, portanto, não decorre mais única e exclusivamente da cópula havida entre duas pessoas de sexo oposto como ocorria anteriormente. É possível a utilização de métodos de reprodução assistida que resultarão no desenvolvimento de um novo ser com os dados genéticos dos seus pais, de modo a sê-lo, de fato, seu filho biológico.

Com os novos métodos científicos, é perfeitamente possível haver inseminação artificial homóloga (art. 1.597, III), a inseminação artificial heteróloga (art. 1.597, V), fertilização in vitro ou na proveta (art. 1.597), além do que é possível mesmo a cessão temporária do útero, nos termos da Resolução n.º 1.957/2010, seção VII, n.º 1 e 2 do Conselho Federal de Medicina. Todos estes métodos de reprodução assistida tem o condão de gerar filhos naturais, exceto a inseminação artificial heteróloga, conforme veremos adiante.

Quanto à inseminação artificial homóloga, temos que é a que resulta da manipulação dos gametas masculinos e femininos do próprio casal. Nas palavras de Paulo Lobo temos que:

A inseminação artificial homóloga é a que manipula gametas da mulher (óvulo) e do marido (sêmen). A manipulação, que permite a fecundação, substitui a concepção natural, havida por meio da cópula. O meio artificial resulta da impossibilidade ou deficiência para gerar de um ou de ambos os cônjuges.[20]

O que nos importa destacar é que a filiação natural decorre da junção do material genético do pai e da mãe do nascituro, malgrado terceiros possam participar do processo gestacional, na hipótese da cessão temporária do útero, por exemplo, o material genético será sempre de ambos os pais.

2.4.2.2. Filiação civil e socioafetiva

No âmbito da filiação civil, tradicionalmente ligada a ideia exclusiva da adoção, vimos ocorrer uma relevante evolução conceitual. Abandonou-se a ideia de que a filiação civil decorre necessariamente da adoção e se passou a admitir que ela seja oriunda do parentesco socioafetivo, bem como de métodos de reprodução assistida com material genético de terceiro (inseminação artificial heteróloga).

A esse respeito convém transcrever observação feita por Flávio Tartuce in Direito Civil – Vol. 5 – Direito de Família, 2014, p. 780:

Tradicionalmente, no que tange ao parentesco civil, este sempre foi relacionado com a adoção […]. Entretanto, diante dos progressos científicos e da valorização dos vínculos afetivos de cunho social, devem ser reconhecidas outras formas de parentesco civil: aquela decorrente de técnicas de reprodução assistida (inseminação artificial heteróloga – com material genético de terceiro) e a parentalidade socioafetiva (Enunciados n. 103 e 256 CJF/STJ, das Jornadas de Direito Civil).

Temos, pois, que a filiação civil é aquela decorrente da adoção e do parentesco socioafetivo. Sobre a possibilidade de reconhecimento da paternidade afetiva transcreve-se importante reflexão:

A conseqüência imediata e maior da plena adoção da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente é a admissão, em termos jurídicos, da denominada ‘paternidade afetiva’, que emerge da relação sócio-afetiva entre pais e filhos, quando ausente o vínculo biológico. O melhor pai ou mãe nem sempre é aquele que biologicamente ocupa tal lugar, mas a pessoa que exerce tal função substituindo o vínculo biológico pelo afetivo.[21]

Não se olvide que os filhos havidos por meio inseminação artificial heteróloga também são civis. Exatamente neste sentido o Enunciado 103 da I Jornada de Direito Civil ao aduzir que o Código Civil reconhece no art. 1.593 outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho.

Frise-se que há a manipulação de material genético de um terceiro que doa o sêmen necessário à concepção, com a devida concordância do pai. Esclarecedora é a redação do Enunciado 104 da I Jornada de Direito Civil:

104 – Art. 1.597: no âmbito das técnicas de reprodução assistida envolvendo o emprego de material fecundante de terceiros, o pressuposto fático da relação sexual é substituído pela vontade (ou eventualmente pelo risco da situação jurídica matrimonial) juridicamente qualificada, gerando presunção absoluta ou relativa de paternidade no que tange ao marido da mãe da criança concebida, dependendo da manifestação expressa (ou implícita) da vontade no curso do casamento.

2.4.3. A filiação no código civil de 1916

O Código Civil de 1916 trazia em seu texto pesadas distinções quanto à filiação conforme ela decorresse ou não de relação matrimonial. Isso porque, na visão do legislador, somente o casamento era apto a constituir verdadeiramente uma família legítima.

Em nome da preservação da instituição tradicional da família e do seu patrimônio material (DIAS, 2015, p. 384), o legislador condenava os filhos extramatrimoniais à marginalização e a reprovação social, tudo isso em nome de preservar a família legítima constituída pelo casamento. Basta lembrar o que o art. 358 do Código previa que: “os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser reconhecidos”. Com isso, impedia que essa classe de filhos concorresse com a prole legítima na sucessão e brindava o genitor com a exclusão dos deveres inerentes ao poder familiar. Clóvis Beviláqua ensinava que,

a falta é cometida pelos pais, e a desonra recai sobre os filhos. A indignidade está no fato do incesto e do adultério, mas a lei procede como se estivesse nos frutos infelizes dessas uniões condenadas.

Assim, dispunha em seu art. 229 que “criando a família legítima, o casamento legitima os filhos comuns, antes dele nascidos ou concebidos (arts. 352 a 354)”. Daí decorriam as denominações que discriminavam os filhos havidos de relações extramatrimoniais. A primeira das classificações reportava-se aos filhos legítimos e aos ilegítimos, conforme decorresse de uma relação matrimonial ou não. Os filhos ilegítimos, por sua vez, eram naturais, caso as pessoas não fossem impedidas de contrair o casamento e espúrios, oriundo de relação onde houvesse impedimento para o casamento. Os filhos espúrios poderiam ser classificados ainda em adulterinos, havidos de relações extraconjugais ou incestuosos, decorrentes de relação havida entre pessoas da mesma família. Na tentativa de aclarar a classificação do antigo Código Civil, veja-se a ilustração abaixo:

Figura 1 – Esquema acerca da Filiação no Código Civil de 1916

O advento de duas normas, em 1942 e 1949, autorizou o reconhecimento ulterior dos filhos ilegítimos, no entanto, somente após a dissolução do casamento do genitor. Sucessivamente o grau de exclusão foi abrandado e o filho ilegítimo passou a poder pleitear alimentos e passaram a ter direito a herança, entretanto, somente metade daquilo que correspondesse ao filho legítimo ou legitimado.

No intuito de acabar de uma vez por todas essa conceituação excludente a Constituição Federal previu a igualdade jurídica entre os filhos. No texto Magno consta o princípio da igualdade de filiação, extirpando, de uma vez, os ranços legislativos do passado.

2.4.4. O princípio da igualdade de filiação

Atento às transformações sociais e sensível a causa da família e ao princípio da dignidade da pessoa humana, o constituinte originário previu no art. 227, § 6º o princípio da igualdade de filiação nos seguintes termos:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. (destaques)

Vê-se, pois, que o campo fértil para a mitigação da verdade biológica teve esteio constitucional. A paternidade deixou de ser calcada exclusivamente na procriação e passou a se assentar no afeto e a paternidade, por sua vez, passou a ser juridicamente qualificada, na medida é abarcada pelo dispositivo constitucional que institui a igualdade jurídica dos filhos. A Doutrina aponta no mesmo sentido:

Embora não seja imprescindível o chamamento do filho, os cuidados na alimentação e na instrução, o carinho no tratamento, quer em público, quer na intimidade do lar, revelam no comportamento a base da paternidade. A verdade sociológica da filiação se constrói. Essa dimensão da relação paterno-filial não se explica apenas na descendência genética, que deveria pressupor aquela e serem coincidentes. Apresenta-se então a paternidade como aquela que, fruto do nascimento mais emocional e menos fisiológico, ‘reside antes no serviço e amor que na procriação.[22]

O professor Max Guerra Kopper (1999) ensina que,

é preciso ter em mente que, em tema de paternidade, nem sempre a verdade jurídica coincide com a verdade biológica (…) essa nova realidade científica, contudo, por certo não terá o condão de, em caráter absoluto, determinar a paternidade jurídica. Isso na medida em que a ‘paternidade’ é muito mais que o fornecimento do material genético necessário à procriação.[23]

Com o advento do art. 227, § 6º da Constituição, não foram recepcionadas as normas de direito infraconstitucional que operavam distinções em relação ao estado de filiação e proibindo que haja qualquer designação que soe como discriminatória. Maria Helena Diniz (2012, p. 491) ensina que apenas por questões didáticas a filiação pode ser classificada em matrimonial ou extramatrimonial. O Código Civil, por sua vez, ao arrepio do próprio texto, trata em capítulos distintos os filhos havidos durante a relação de casamento (no capítulo intitulado “Da Filiação”) e os havidos fora dela (no capítulo intitulado “Do reconhecido dos filhos”. Isso se dá em razão do legislador ainda adotar a presunção de paternidade nos casos inseridos no rol do art. 1.597:

Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;

II – nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;

III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

Trata-se de resquícios do Direito Romano. A presunção pater is est quem justae nuptiae demonstrant, em que pese seja relativa (iuris tantum), ainda demonstra os ligeiros flertes que o legislador possui com a legislação passada, sobretudo porque não há razão que justifique que a presunção seja aplicada ao casamento e não à união estável[24]. Em verdade, deve-se conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 1.597 do Código Civil para se aplicar por analogia a presunção pater is est aos filhos nascidos na constância da união estável, visto ser intolerável a discriminação entre os filhos nascidos do casamento e os filhos nascidos da união estável (RSTJ 5:307). Nesse mesmo passo, o Superior Tribunal de Justiça recentemente, num precedente pioneiro e paradigmático, decidiu conferir interpretação sistemática ao art. 1.597 do Código Civil para, em homenagem à Constituição Federal (art. 226, § 3.º) e ao Código Civil (art. 1.723), aplicar a presunção pater is est também à união estável[25].

Tal precedente revela um direito mais comprometido com a dignidade da pessoa humana e atendo à pluralidade de entidades familiares e à isonomia constitucional entre os filhos, respaldado na ideia de que” na fase atual da evolução do Direito de Família, é injustificável o fetichismo de normas ultrapassadas em detrimento da verdade real, sobretudo quando em prejuízo de legítimos interesses de menor “(RSTJ).

Parece-nos forçoso concluir que foi o legislador profundamente infeliz ao deixar de promover uma readequação do texto legal e que mesmo a classificação da filiação conforme a distinção realizada pelo Código Civil é discriminatória e, portanto, inconstitucional, ainda que se explique pelo viés da presunção da paternidade – pater is est quem justae nuptiae demonstrant, que ao nosso ver é um ranço que o legislador historicamente reproduz. Luiz Edson Fachin, em sentido contrário ensina que,

como a Constituição manteve o casamento como fonte da fami1ia, desaparece a designação discriminatória, mas permanece a distinção. Há um resíduo diferenciador sem que implique uma ofensa ao princípio da igualdade, porque distinguir não significa discriminar.

Encerrando o introito civil do presente estudo nos importa frisar alguns pontos a fim de permitir melhor esclarecimento:

1. A família é uma realidade sociológica e nuclearmente implica na adoção de um conceito pluralista;

2. A filiação é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.

3. A filiação natural não é mais aquela decorrente da relação sexual havida entre duas pessoas de sexo oposto, podendo haver manipulação genética dos gametas de ambos;

4. A filiação civil pode ser decorrente da adoção, da socioafetividade e também da reprodução heteróloga assistida;

5. E, por fim, por expressa disposição constitucional, juridicamente não há qualquer diferença entre os tipos de filiação. Tanto a filiação civil quanto a natural tem o condão de configurar o estado de filiação de idêntico modo, sendo vedada a adoção de termos discriminatórios em relação a ela.

JOÃO BATISTA VILLELA (2012) afirma que a”verdadeira paternidade não é um fato da biologia, mas um fato da cultura. Está antes no devotamento e no serviço do que na procedência do sêmen“.

3. DA INCONSTITUCIONALIDADE PARCIAL POR OMISSÃO DA LEI 13.142/2015

3.1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Malgrado a noção plurívoca do termo, Constituição é a lei fundamental e suprema, que ocupa o mais alto grau normativo no ordenamento jurídico de um determinado Estado. Transmite o conceito nuclear de “[…] um princípio supremo que determina integralmente o ordenamento estatal e a essência da comunidade constituída por esse ordenamento[1]. Para Hesse a expressão consagra a ordem jurídica fundamental da coletividade (Die Verfassung ist die rechtliche Grundordnung des Gemeinwesens)[2]. No ensinamento de José Afonso da Silva apud Lenza (2013, p. 64) consoante as lições kelsenianas:

Constituição significa norma fundamental hipotética, cuja função é servir de fundamento lógico transcendental da validade da Constituição jurídico-positiva, que equivale à norma positiva suprema, conjunto de normas que regula a criação de outras normas, lei nacional no seu mais alto grau.

 

É, portanto, o fundamento de validadede todo ordenamento jurídico, de modo que toda e qualquer produção normativa deve guardar consonância com o conteúdo inserto na Lei Maior, sob pena de incorrer em vício de inconstitucionalidade.

Os dispositivos constantes do Texto Magno são classificados em materiais e formalmente constitucionais[3], a depender do seu conteúdo ser ou não ligado às questões estruturais do Estado; mas não se olvide que ambas as normas se inserem no bloco de constitucionalidade e, por isso, são parâmetros para aferição da adequação normativa aos ditames da Constituição.

Neste diapasão, em sentido material, Constituição significa o conjunto de normas que disciplinam a criação das vigas mestras, essenciais do Estado, organizam os entes estatais e preveem o procedimento legislativo[4]. Em sentido formal, é o conjunto de regras promulgadas que, inseridas na Constituição, não versam sobre o conteúdo fundante do ente estatal, vale dizer: são constitucionais por estarem presentes no texto constitucional e, em razão disso, são submetidas a uma forma de revisão dificultosa[5].

O objeto do controle de constitucionalidade será sempre uma lei ou um ato normativo do poder público. Por lei deve-se entender todas as espécies normativas primárias insertas no art. 59 da Constituição Federal, a saber: emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.

Já os atos normativos, segundo ensina o Professor Alexandre Moraes (2013, p. 559) são as resoluções administrativas, atos estatais de conteúdo meramente derrogatório. O autor, utilizando-se dos ensinamentos de Castanheira A. Neves aduz que poderá ser objeto de controle qualquer “ato revestido de indiscutível caráter normativo”, motivo pelo qual se inserem neste rol os regimentos internos dos tribunais, deliberações administrativas dos órgãos judiciários, as deliberações dos Tribunais Regionais do Trabalho que determinam o pagamento a magistrados e servidores das diferenças de plano econômico[6], salvo as convenções coletivas de trabalho; resolução do Conselho Interministerial de Preços — CIP[7], que concedeu aumento de preço aos produtos farmacêuticos, permitindo, portanto, a verificação de sua compatibilidade com a Constituição Federal e etc.

3.2. CONSTITUCIONALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE

Consoante Jorge Miranda apud Mendes (2010, pág. 1421) constitucionalidade e inconstitucionalidade designam conceitos de relação, isto é, “a relação que se estabelece entre uma coisa — a Constituição — e outra coisa — um comportamento — que lhe está ou não conforme, que com ela é ou não compatível, que cabe ou não no seu sentido”.

Considera que, enquanto ordem jurídica fundamental, a Constituição contém as linhas básicas do Estado e estabelece diretrizes e limites ao conteúdo da legislação vindoura. Não se cuida, porém, de uma relação lógica ou intelectiva, adverte o mestre português, mas de uma relação de caráter normativo e valorativo[8].

A relação de índole normativa é que dá azo a declaração de inconstitucionalidade, porque somente assim pode se lograr êxito em afirmar a obrigatoriedade da Constituição e a ineficácia do que lhe for contrário. “Não estão em causa — diz Jorge Miranda — simplesmente a adequação de uma realidade a outra realidade, de um quid a outro quid, ou a descorrespondência entre este e aquele ato, mas o cumprimento ou não de certa norma jurídica”.[9]

3.3. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

3.3.1. Pressupostos do controle de constitucionalidade

Controlar a legalidade dos atos normativos produzidos tem como pressupostos a existência de dois requisitos, a saber: 1. Que a Constituição seja do tipo rígida; 2. Previsão constitucional de um mecanismo de fiscalização da validade das leis.

Tais pressupostos são elementos absolutamente necessários, sem os quais o controle de constitucionalidade não será possível, conforme veremos.

3.3.1.1. Constituição rígida

A ideia de controle está ligada à de rigidez constitucional (TEMER, 2010). Constituição do tipo rígida é aquela onde a estabilidade das normas constitucionais é garantida pela “exigência de procedimento especial, solene, dificultoso, exigente de maiorias parlamentares elevadas, para que se vejam alteradas pelo poder constituinte de reforma” (MENDES, 2012).

A rigidez é atributo diretamente ligado ao princípio da supremacia formal da Constituição. Tal característica concede à Carta Maior, no conjunto de normas do ordenamento jurídico interno, status de superioridade que se manifesta na impossibilidade do legislador ordinário proceder a sua alteração sem um procedimento solene e dificultoso. Em razão do princípio da supremacia da Constituição, a Lei Maior ocupa o ápice do ordenamento jurídico do Estado Brasileiro, constituindo-se pedra angular, em que assenta o edifício do moderno direito político. Esse é o pensamento do mestre português José Afonso da Silva (2006, p. 45), para quem:

A Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que elas o reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às normas jurídicas.

Em outras palavras podemos afirmar que a Constituição é o fundamento de validade de todo o sistema normativo, de observância obrigatória (LENZA, 2013). Daí, inferimos que há um verdadeiro escalonamento de normas, uma constituindo o fundamento de validade da outra, numa verticalidade hierárquica. Ou seja, uma norma de hierarquia inferior, busca o seu fundamento de validade na norma superior, e esta na seguinte, até chegar-se a Constituição. Acerca deste princípio, arremata o mestre português:

[…] resultado da compatibilidade vertical das normas da ordenação jurídica de um país, as normas de grau inferior somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é aConstituiçãoo. As que não forem compatíveis com ela são inválidas, pois a incompatibilidade vertical resolve-se em favor das normas de grau mais elevado, que funcionam como fundamento de validade das inferiores.

A ideia de verticalidade hierárquica é classicamente representada pela pirâmide normativa, onde a Constituição ocupa o ápice das normas postas, sendo seguida por outros tipos normativos inferiores.

Em um ordenamento onde a Constituição seja flexível não haverá supremacia formal da Constituição, porquanto todas as normas produzidas possuirão o mesmo status hierárquico, impossibilitando que uma norma sirva de fundamento da outra. O Professor Alexandre Morais (2013) esclarece que:

A ideia de intersecção entre controle de constitucionalidade e constituições rígidas é tamanha que o Estado onde inexistir o controle, a Constituição será flexível, por mais que a mesma se denomine rígida, pois o Poder Constituinte ilimitado estará em mãos do legislador ordinário.

3.3.1.2. Previsão constitucional de um mecanismo de fiscalização da validade das leis

Trata-se de requisito que tem por base assegurar a separação dos poderes. A Constituição deve prever a existência de pelo menos um órgão estatal independente encarregado de verificar a validade dos comportamentos, leis e atos, normativos ou concretos[10] com os parâmetros estabelecidos no Texto Magno. Do contrário, a Constituição não teria efetivamente força normativa, assemelhando-se a uma mera Carta de Intenções, de observância facultativa, visto que não seria de per si suficiente para expurgar normas contrárias ao seu texto. Cita-se lúcido exemplo trazido por Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2013, p. 764), para melhor compreender essa necessidade:

[…] basta constatar que em um Estado no qual todas as funções (poderes) estejam concentrados nas mãos de um déspota, não existe qualquer possibilidade de que um provimento deste venha a ser declarado ilegítimo, contrário ao Direito. Simplesmente não existirá nenhum órgão com poder para realizar tal verificação.

Gilmar Mendes (2012, p. 1423) nos ensina que é inegável que a ausência de sanção retira a obrigatoriedade de observação da Constituição, transmutando o conceito de inconstitucionalidade em uma simples manifestação de censura ou crítica. Kelsen[11] afirma que uma Constituição que não dispor acerca de garantias para anulação de atos inconstitucionais não é propriamente obrigatória e que a possibilidade de aplicação de sanção direta a órgão ou agente que promulga ato inconstitucional não é suficiente, na medida em que não o retira do ordenamento jurídico. Eis o magistério do jurista vienense:

Embora não se tenha plena consciência disso — porque uma teoria jurídica dominada pela política não lhe dá ensejo — é certo que uma Constituição que, por não dispor de mecanismos de anulação, tolera a subsistência de atos e, sobretudo, de leis com ela incompatíveis, não passa de uma vontade despida de qualquer força vinculante. Qualquer lei, simples regulamento ou todo negócio jurídico geral praticado por entes privados têm uma força jurídica superior à Constituição, a que estão subordinados e que lhes outorga validade. É que a ordem jurídica zela para que todo ato que contraria uma norma superior diversa da Constituição possa ser anulado. Assim, essa carência de força obrigatória contrasta radicalmente com a aparência de rigidez outorgada à Constituição através da fixação de requisitos especiais de revisão. Por que tanta precaução se as normas da Constituição, ainda que quase imutável, são, em verdade, desprovidas de força obrigatória? Certo é, também, que uma Constituição, que não institui uma Corte Constitucional ou órgão análogo para anulação de atos inconstitucionais, não se afigura de todo desprovida de sentido jurídico. A sua violação pode dar ensejo a sanções onde exista pelo menos o instituto da responsabilidade ministerial contra os órgãos que participaram da formação do ato, desde que admita sua culpa. Mas, além do fato de que, como ressaltado, essa garantia não se mostra muito eficaz, uma vez que deixa íntegra a lei inconstitucional, não se há de admitir que a Constituição estabeleça uma única via possível para a edição de leis. O texto constitucional explicita, consoante o seu sentido literal e subjetivo, que as leis devem ser elaboradas de um certo modo e que hão de ter, ou não, determinado conteúdo. Mas no seu sentido objetivo, admite a Constituiçãoque a lei é válida, mesmo em caso de inobservância de regras de índole procedimental ou material.[12]

3.4. ESPÉCIES DE INCONSTITUCIONALIDADE

3.4.1. Inconstitucionalidade por ação e omissão

Ensejará a inconstitucionalidade por via de ação, positiva ou por atuação sempre que por meio de uma conduta se produzir um ato normativo em desacordo com a Constituição Federal.

Será inconstitucional por via de omissão quando o legislador deixar de produzir um ato normativo que regule uma norma constitucional de eficácia limitada ou ainda quando deixar de observar determinado preceito tido por obrigatório pela Constituição quando da elaboração de outro ato normativo.

A inconstitucionalidade por via de ação pode se dar em decorrência de vício formal, material e, segundo doutrina de Pedro Lenza (2013, p.226), por vício de decoro parlamentar. Sintetizemos o supracitado:

Figura 2 – Espécies de Inconstitucionalidade

O vício material[13] está ligado ao conteúdo do ato legislativo. Nas palavras de Barroso, “a inconstitucionalidade material expressa uma incompatibilidade de conteúdo, substantiva entre a lei ou ato normativo e a Constituição”. Pode traduzir-se tanto em um confronto a uma regra constitucional (fixação de remuneração de uma categoria de serviços públicos acima do limite constitucional, art. 37, XI), como a um princípio constitucional, a exemplo das leis que restringem a participação de candidatos em concurso público de maneira ilegítima, em razão do sexo ou idade (art. 5º, caput), o que implicaria em violação ao principio da igualdade material.

Já em relação ao vício formal, estar-se-á diante de afronta ao devidoprocesso legislativo. O vício ocorrerá sempre em relação à forma de exteriorização do ato e não pelo seu conteúdo. Segundo Canotilho, os vícios formais:

[…] incidem sobre o acto normativo enquanto tal, independentemente do seu conteúdo e tendo em conta apenas a forma da sua exteriorização; na hipótese inconstitucionalidade formal, viciado é o acto, nos seus pressupostos, no seu procedimento de formação, na sua forma final.[14]

O vício de decoro parlamentar é uma inovação doutrinária que foi criada a partir dos casos do “Mensalão” e “Mensalinho”, onde supostamente houve compra dos votos dos parlamentares em relação a diversas matérias, viciando por consequência o ato legislativo aprovado com votos “comprados”. Assim, todas as normas produzidas apresentariam vícios de vontade, fulminando a manifestação do ato. O fundamento da decretação de inconstitucionalidade seria o art. 55, § 1º da Constituição que aduz ser: “incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”.

3.5. DA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DA LEI FEDERAL N.º 13.142/2015

Cônscio das atrocidades legislativas diuturnamente perpetradas pelo legislador infraconstitucional, o constituinte de 1988 foi sensível à causa da família, reconhecendo que a instituição familiar merece especial proteção do Estado. Especificamente em relação ao estado de filiação, ocorreu verdadeira dignificação, na medida em que se proibiu haver distinções relativas à descendência da prole. Com efeito, dispõe a Constituição Federal no seu artigo 227 que:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

[…]

§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Trata-se, como visto em capítulo específico, do princípio da igualdade da filiação. Com essa inserção, finalmente operou-se a extinção de qualquer privilégio ou prioridade dada a descendência da prole e a consequente abolição de termos discriminatórios que indicavam a procedência biológica ou mesmo a natureza da relação amorosa havida entre os pais. Realizou-se verdadeira dignificação do estado de filiação. Para Rolf Madaleno (2012):

Finalmente, a Carta Federal resgata a dignidade da descendência brasileira, deixando de classificar filhos pela maior ou menor pureza das relações sexuais, legais e afetivas de seus pais, quando então, os filhos eram vistos e classificados por uma escala social e jurídica direcionada a discriminar o descendente e a sua inocência, por conta dos equívocos ou pela cupidez de seus pais.

Destarte, atualmente, segundo o mandamento constitucional só há duas classes de filhos, aqueles que são filhos e aqueles que não são, não havendo mais, portanto, qualquer expressão discriminatória atrelada à filiação, tendo sido os adjetivos legítimos, legitimados, ilegítimos, incestuosos, adulterinos, naturais, espúrios e adotivos totalmente abolidos do ordenamento jurídico brasileiro (HIRONAKA, 2000)[15].

Diante do exposto, indaga-se: com o advento da Lei Federal n.º 13.142/2015 agiu o legislador contra os ditames constitucionais? Forçosa a resposta afirmativa.

O controle de constitucionalidade, em decorrência da adoção do sistema misto, é realizado pelos Três Poderes, em diferentes momentos e situações. Durante a fase de tramitação legislativa, o Poder Legislativo exerce controle de constitucionalidade prévio, por meio da emissão de Pareceres de suas respectivas Comissões de Constituição. Na tramitação da Lei 13.142/2015 não foi diferente. O breve parecer de autoria do Relator Senador Álvaro Jucá, que atuou em substituição a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania – CJC não fez aprofundada análise de constitucionalidade referente à adequação material do Projeto de Lei apreciado com a Constituição Federal, fazendo-o tão somente em relação ao aspecto formal, nos seguintes termos:

[…] registramos não existirem vícios de constitucionalidade formal na proposição em exame. A matéria nela tratada está compreendida no campo da competência da União para legislar sobre direito penal, consoante dispõe o art. 22, I, da Constituição Federal (CF), bem como possui seu autor legitimidade para iniciar o processo legislativo, nos termos do art. 61, também do texto constitucional.

O mais próximo de uma análise material da constitucionalidade da Lei em que se debruçou o Relator foi quando ressaltou o fato de que haveria proporção entre os gravames penais impostos com os demais previstos na legislação penal:

[…] as novas penas cominadas pelo PLC nº199, de 2015, guardam proporcionalidade com demais hipóteses semelhantes já estabelecidas na legislação penal, a exemplo das outras figuras do homicídio qualificado (art. 121, § 2º, do CP) e de lesões corporais agravadas (art. 129, §§ 7º, 10º e 11º, do CP).

Malgrado os significativos avanços operados pela Constituição, passaram tais mudanças ao largo do Poder Legislativo quando da elaboração da Lei Federal n.º 13.142/2015, que conferiu proteção somente

contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau (sic), em razão dessa condição.

Exclui o legislador, portanto, da especial proteção da Lei a figura dos filhos adotivos e socioafetivos, que são parentes em primeiro grau, porém oriundos de parentesco civil e não consanguíneo. Diante dessa lamentável inserção legislativa, inegável a violação tanto ao artigo 227, § 6º e por ricochete também ao princípio da igualdade inserto no caput do artigo , ambos da Constituição Federal[16].

O magnânimo jurista Celso Antônio Bandeira de Mello parece ter encontrado parâmetros sólidos e coerentes em sua clássica monografia sobre o tema do princípio da igualdade, na qual estabelece três questões a serem observadas, a fim de se verificar o respeito ou desrespeito ao aludido princípio. O desrespeito a qualquer delas leva à inexorável ofensa à isonomia. Resta, então, enumerá-las:

a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação;

b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado;

c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados.

Em relação ao primeiro item, o elemento tomado como fator de diferenciação foi a origem do parentesco filial. Tal diferenciação não encontra respaldo na atual ordem constitucional, porquanto por disposição expressa da Constituição os filhos, naturais ou civis, terão os mesmos direitos e qualificações.

Em relação ao segundo item, a diferenciação promovida pelo legislador infraconstitucional não encontra correlação lógica abstrata entre o fato erigido como critério de discriminação – a origem consanguínea da filiação – com o tratamento jurídico diverso, porquanto está-se diante do estado de filiação una, bem como da proibição de discriminação: ou se é filho ou não se é. Rose Melo Venceslau (2004, p. 45) afirma que:

[…] o estatuto constitucional da filiação reflete uma filiação una, igualitária, qualquer que seja sua origem. Para a norma constitucional não há vínculo mais forte, nem o de sangue, nem o do amor. Filho é tão somente filho. E esse filho, não importa a que forma de família pertença, encontra nela instrumento de realização de direitos.

Por derradeiro, a norma infraconstitucional vai de encontro aos interesses da Carta Política, eis que subverte diversos dos seus postulados, dentre os quais o da próprio igualdade substancial.

Impende-se reconhecer que mesmo diante da inexistência das disposições constitucionais do art. 227, § 6º, a norma penal em análise padeceria de vício de inconstitucionalidade material na medida em que desprestigia o princípio da unidade da Constituição. Isso porque não nos parece sensato que uma Constituição fundada no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e outros postulados correlatos permita que vija no ordenamento jurídico produção legislativa com distinções discriminatórias desarrazoadas. É que há de se reconhecer no plano hermenêutico a chamada por Hesse de “vontade da Constituição” (Wille zur Verfassung), objetivando conferir ao Texto Maior sua força normativa devida. Pedro Lenza (2013, p. 877) afirma que a Constituiçãotem a forte tendência de prestigiar o principio da igualdade material:

[…] diversas hipóteses a própriaConstituiçãoo se encarrega de aprofundar a regra da isonomia material: a) art. 3.º, I, III e IV; b) art. 4.º, VIII; c) art. 5.º, I, XXXVII, XLI e XLII; d) art. 7.º, XX, XXX, XXXI, XXXII e XXXIV; e) art. 12, §§ 2.º e 3.º; f) art. 14, caput; g) art. 19, III; h) art. 23, II e X; i) art. 24, XIV; j) art. 37, I e VIII; k) art. 43, caput; l) art. 146, III, d (EC n. 42/2003 — Reforma Tributária); m) art. 150, II; n) art. 183, § 1.º, e art. 189, parágrafo único; o) art. 203, IV e V; p) art. 206, I; q) art. 208, III; r) art. 226, § 5.º; s) art. 231, § 2.º etc.

E continua:

Em outras, é o próprio constituinte quem estabelece as desigualdades, por exemplo, em relação à igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações, nos termos da Constituição, destacando-se as seguintes diferenciações: a) art. 5.º, L (condições às presidiárias para que possampermanecer com os seus filhos durante o período de amamentação); b) art. 7.º, XVIII e XIX (licença-maternidade e licença-paternidade); c) art. 143, §§ 1.º e 2.º (serviço militar obrigatório); d) arts. 201, § 7.º, I e II; 201, § 8.º; art. 9.º da EC n. 20/98; art. 40 da CF/88; art. 8.º da EC n. 20/98; arts. 2.º e 6.ºda EC n. 41/2003 — Reforma da Previdência — dentre outros (regras sobre aposentadoria).

Dessa forma, a aplicação dos preceitos contidos na Carta Maior devem ser precedidos de uma análise que considere a Constituição como o todo orgânico que é. Nas palavras de Canotilho (2004):

[…] na solução dos problemas jurídico-constitucionais deve dar-se prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos daConstituiçãoo (normativa), contribuem para uma eficácia ótima da lei fundamental. Consequentemente, deve dar-se primazia às soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estruturas constitucionais, possibilitam a ‘actualização’ normativa, garantindo, do mesmo pé, a sua eficácia e permanência.

Diante disso, reconhecemos que mesmo diante de eventual omissão equiparando a descendência da prole, mesmo assim a Lei sob análise restaria inconstitucional.

Sem apelos aos exageros, cremos estar diante daquele estado de inconstitucionalidade que Sepúlveda Pertence teve por bem denominar de “inconstitucionalidade chapada”, tamanha a afronta ao texto constitucional.

3.6. INCONSTITUCIONALIDADE POR VIA DE AÇÃO OU OMISSÃO?

Dúvida basilar acerca do tipo de inconstitucionalidade que macula a Lei n.º 13.142 diz respeito a espécie de vício que ela carrega, sobretudo quanto à atuação do legislador.

A priori, poderíamos naturalmente afirmar estarmos diante de uma inconstitucionalidade por via de ação, eis que originária de uma conduta positiva do legislador, no caso, de inserir uma expressão atentatória à igualdade de filiação. Bastava que se ordenasse “riscar” a expressão “consanguíneos” e a norma tornar-se-ia constitucional.

Ao ressaltar que o reconhecimento da inconstitucionalidade por omissão é relativamente recente no ordenamento jurídico, Gilmar Mendes destaca que antes a inconstitucionalidade da lei sempre configurava caso de inconstitucionalidade por ação, decorrente de um afazer positivo do legislador. É o pensamento a que chegaríamos caso não considerássemos que a omissão legislativa inconstitucional pressupõe a inobservância de um dever constitucional de legislar, isto é, a ação do poder legislativo é omissa no atendimento aos comandos explícitos da Lei Maior. Desposa do mesmo entendimento Luiz Flávio Gomes, para quem o presente caso também configura inconstitucionalidade por via de omissão, eis que a lei “disse menos do que deveria dizer”.

Essencial a se chegar corretamente a esta assertiva frisarmos a existência de um comando legal de caráter cogente – o art. 227, § 6º da CF -, eis que daí exsurge o dever legal da produção normativa ser compatível com os ditames do princípio da igualdade jurídica dos filhos. Por sua não observância, configura-se flagrante inconstitucionalidade por via de omissão, eis que o Poder Legislativo não observou as normas materiais a que deveria quando da elaboração da Lei.

Ainda dentro dessa classificação, podemos afirmar que a inconstitucionalidade por omissão é de caráter parcial.

3.7. DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE PARCIAL

A inconstitucionalidade pode recair sob todo o ato normativo (total) ou apenas parte dele (parcial)[17].

A regra é que a aferição da adequação normativa seja realizada dispositivo por dispositivo, matéria por matéria. No entanto, há casos em que se impõe seja feita a declaração total da inconstitucionalidade, extirpando todo o ato normativo do ordenamento jurídico.

Questionamento que interessa ao presente estudo versa sobre a possibilidade de declarar apenas parcialmente a inconstitucionalidade da Lei n.º 13.142/2015.

No atual sistema constitucional brasileiro, é possível que a declaração de inconstitucionalidade recaia sobre fração de artigo, parágrafo, inciso, alínea ou mesmo sobre palavras destes dispositivos, desde que não subverta substancialmente o sentido que emprestou-lhe o legislador. Nesse sentido, a doutrina de Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2013):

Entretanto, a declaração de constitucionalidade parcial pelo Poder Judiciário não poderá subverter o intuito da lei, mudando o seu sentido e alcance, sob pena de ofensa ao princípio da separação dos poderes, que impede a atuação do Poder Judiciário como legislador postivo. Assim, se a declaração da inconstitucionalidade parcial implicar mudança do sentido e alcance da norma impugnada, O Poder Judiciário deverá declarar a inconstitucionalidade de toda a norma, sob pena de atuar indevidamente) como autêntico legislador positivo.

Não nos parece que o motivo determinante da edição legislativa tenha sido tutelar especificamente a filiação consanguínea. Antes, agiu o legislador no intento de tutelar a função pública, havendo incorrido em inconstitucionalidade por inobservância, descuido quanto às normas cogentes.

Decorrência disso impende-se afirmar a necessidade de declaração de inconstitucionalidade parcial dos dispositivos que contenham a expressa “consanguinidade”, porquanto não alteram ou subvertem a mens legiatoris que animou o legislador quando da elaboração da Lei.

CONCLUSÃO

Pelo abordado no presente trabalho, verificou-se que a Lei Federal n.º 13.142/2015 padece de vício de inconstitucionalidade parcial por via de omissão. O legislador descuidou-se da observância das normas constitucionais cogentes no momento de editar a Lei Federal em especial que a Carta Maiorpreviu no art. 227, § 6º a igualdade jurídica da filiação, seja ela de origem natural ou civil. Neste particular, ao criar distinção desarrazoada em âmbito infralegal o poder legiferante atuou contra disposição expressa da Constituição, afrontando seu texto e desafiando o escalonamento vertical das normas.

Ainda que inexistente a positivação deste importante princípio, a discriminação operada não encontra guarida em face do princípio da dignidade da pessoa humana e o postulado da igualdade inserto no caput do art. 5º, eis que diante da fase pós-positivista pela qual passa o atual direito posto, forçoso reconhecer a normatividade dos princípios.

Entretanto, em que pese a inconstitucionalidade das alterações penais, impende-se reconhecer o princípio da presunção de constitucionalidade das leis e, decorrência disso, que haverá produção regular dos seus efeitos legais enquanto esta não for extirpada do ordenamento jurídico, produzindo até tal marco situações absolutamente díspares, como restou demonstrado.

A aplicação da analogia para fazer valer a disposição constitucional comentada amolda-se a afronta ao princípio da legalidade penal, eis que cria, no caso concreto, nova norma penal em prejuízo do réu e, conforme repisado, na doutrina é reconhecida que eventuais omissões nos textos normativos penais devem ser consideradas como vontades negativas do legislador e nunca o contrário, sob pena de afronta ao princípio da separação dos poderes.

Restou demonstrada a possibilidade de declaração parcial do texto normativo, eis que tal supressão não teria o condão de obliterar a mens legiatoris que animou o legislador ao produzir a norma e, afastado tal vício, o Poder Judiciário não atua na condição de legislador positivo.

Com isso, acredita-se tenha o trabalho servido ao propósito que deu azo a sua elaboração, qual seja analisar a constitucionalidade da lei federal sob comento.


[1] Hans Kelsen, La garanzia giurisdizionale della costituzione, in La giustizia costituzionale, Milano: Giuffrè, 1981, p. 152; e A garantia jurisdicional da Constituição, in Jurisdição constitucional, tradução do alemão por Alexandre Krug, do italiano, por Eduardo Brandão, e do francês, por Maria Ermantina Galvão, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 130.

[2] Konrad Hesse, Grundzuge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, cit., p. 10; e Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, cit., p. 29.

[3] Sintetizando o assunto, TEMER (2010, p. 45) ensina que a obrigatoriedade de respeito aConstituiçãoo se dá em dois níveis: o formal e o material.

[4] Hans Kelsen, La garanzia giurisdizionale della costituzione, in La giustizia costituzionale, cit., p. 152; e A garantia jurisdicional da Constituição, in Jurisdição constitucional, cit., p. 130-131.

[5] Tome-se de exemplo o art. 241, § 2º que disciplina que o “Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal”. Trata-se de norma apenas formalmente constitucional, porque consta da Constituição, sendo materialmente estranho à matéria.

[6] Precedente: STF, ADI 681/DF, Rel. Min. Néri da Silveira, reconhecendo o seu caráter normativo.

[7] STF, Pleno, ADI 8-0/DF, Rel. Min. Carlos Velloso.

[8] Direito constitucional e teoria daConstituiçãoo, cit., p. 1338-1339.

15 Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., p. 273-274.

16 Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., p. 274.

[9] Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., p. 274.

[10] Neste sentido, STF/ADI 4048 MC / DF Julgamento em 14/05/2008.

[11] Hans Kelsen, La garanzia giurisdizionale della costituzione, in La giustizia costituzionale, cit., p. 199-200; e A garantia jurisdicional da Constituição, in Jurisdição constitucional, cit., p. 139-140.

[12] Hans Kelsen, La garanzia giurisdizionale della costituzione, in La giustizia costituzionale, cit., p. 199-200; e Wesen und Entwicklung der Staatsgerichtsbarkeit, VVDStRL, Caderno 5, 1929, p. 78-79.

[13] A doutrina, no tocante aos tipos de inconstitucionalidade material e formal, também os denomina de vicio de inconstitucionalidade nomoestática e nomodinâmica, respectivamente. Neste sentido: “[…] a inconstitucionalidade pode resultar de desconformidade do conteúdo do ato ou do seu processo de elaboração com alguma regra ou princípio da Constituição. Na primeira hipótese – desconformidade de conteúdo – teremos a inconstitucionalidade material (ou nomoestática), enquanto na segunda – desconformidade ligada ao processo de elaboração da norma -, a inconstitucionalidade formal (ou nomodinâmica)”.

[14] J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria daConstituiçãoo, 7ª ed., p. 959.

[15] Note-se que neste ponto há dissenso doutrinário em relação a classificação “matrimonial” e “extramatrimonial” em razão das presunções que oCódigo Civill adota acerca do estado de paternidade.

[16] Sustentamos que em verdade, em que pese haver violação a dois dispositivos constitucionais distintos, trata-se de avanço que afronta teleologicamente o princípio da igualdade, na medida em que o artigo 226, § 6º é a positivação daquele princípio, porém aplicado às relações filiais.

[17] A regra constitucional que restringe o exame de constitucionalidade a totalidade do dispositivo diz respeito ao controle exercido pelo Chefe do Poder Executivo, quando pode exercer o “veto jurídico”, nos termos do art.666,§ 2ºº[17] daConstituição Federall.


[1]BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 2012, p. 60.

[2] GOMES, Orlando. Direito de Família. 14º ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 39.

[3] RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Direito de Família. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, V. 6, p.4.

[4] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2001. V.5, p.13.

[5] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: Direito de Família. 6. Ed. Rev. E atual. São Paulo: Saraiva, 2009. V.6. P. 1.

[6] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 2012, p. 60.

[7] Idem.

[8] Note que isso deu-se com o advendo da EC n.º666/2010.

[9] Art. 229. Criando a família legítima, o casamento legitima os filhos comuns, antes dele nascidos ou concebidos (arts. 352 a 354).

[10] Art. 315. A sociedade conjugal termina: […]

Parágrafo único. O casamento valido só se dissolve pela morte de um dos conjugues, não se lhe aplicando a preempção estabelecida neste Código, art. 10, Segunda parte.

[11] Art. 337. São legitimos os filhos concebidos na constancia do casamento, ainda que annullado (art. 217), ou mesmo nullo, se se contraiu de boa fé (art. 221).

[12] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito Civil: alguns aspectos da sua evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 170.

[13] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 10ª ed. Rev., atual e ampl.. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 25.

[14] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 4ª ed., 2007, p. 52/53.

[15] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil, vol VI, Direito de Família. São Paulo: Editora Atlas, 13ª ed., 2013, p. 58.

[16] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 4ª ed., 2007, p. 47.

[17] Idem, p. 46.

[18] Idem, p. 48.

[19] GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro. Direito de Família. Volume 6. Saraiva. 8ª edição, p. 318.

[20] LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 200.

[21] BARBOZA, Heloísa Helena. Novas relações de filiação e paternidade. Anais do I Congresso Brasileiro de Direito de Família. Minas Gerais: IBDFAM, 1999, p. 140.49

[22] FACHIN, Luiz Edson. Paternidade: Relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rei, 1996, p. 37.

[23] KOPPER, Max Guerra. Adoção à brasileira Existência, efeitos e desconstituição. Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público, Brasília, ano 7, nº 14, jul/dez. De 1999, p. 19.

[24] Neste ponto, o Professor João Aguirre entende que há fundamento apto a justificar a presunção em favor do casamento, eis que no matrimônio há prova constituída da união ao passo que na União Estável, seria necessário proceder-se a comprovação do vínculo.

[25] REsp 1.194.059/SP, 3.ª Turma, rel. Min. Massami Uyeda, DJe 14.11.2012.


[1] Texto inserido na própria justificativa do então Projeto de Lei.

[2] Achar o artigo do LFG que fala sobre o arcabouço legislativo eficaz e a ineficácia das ações do executivo.

[3] AMARAL, Claudio do Prado. Princípios penais – Da legalidade à culpabilidade, p. 155-156.

[4] ZAFFARONI, 1998, p.15.

[5] ROXIN, 2003, p.16-18.

[6] CEPEDA, 2007, p. 51.

[7] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, p. 87.

[8] BITENCOURT, CEZAR. Qualificadora de homicídio contra policial não protege a pessoa, e sim a função. Consultor Jurídico, julho de 2015. http://www.conjur.com.br/2015-jul-29/cezar-bitencourt-homicidio-policial-protege-funcao-pública. Data de acesso: 22/11/2015.

[9] SANCHES, ROGÉRIO. Nova Lei n.º 13.142/2015, breves comentários. Portal Carreira Jurídica, setembro de 2015. http://www.portalcarreirajuridica.com.br/noticias/nova-lei-13-142-15-breves-comentarios-por-rogerio-sanches-cunha. Data de acesso: 20/10/2015.

[10] Tamanha sua importância, a analogia está positivada na legislação pátria. Tanto no art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, bem como no art. 126 do Código de Processo Civil:

Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Art. 126 O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. No Novo Código de Processo Civil não há expressa menção a este importante meio integrativo, que continuará plenamente aplicável no ordenamento jurídico em razão da disposição inserta na LINDB.

[11] Note-se que a respeito da utilização destes métodos, existe ordem preferencial de utilização, nos consagrados na disposição havida na LINDB. Isto é, prefere-se a analogia aos costumes e estes aos princípios gerais do direito. Neste sentido a lição de Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 78): “Há uma hierarquia na utilização desses mecanismos, figurando a analogia em primeiro lugar. Somente podem ser utilizados os demais se a analogia não puder ser aplicada. Isso porque o direito brasileiro consagra a supremacia da lei escrita. Quando o juiz utiliza-se da analogia para solucionar determinado caso concreto, não está apartando-se da lei, mas aplicando à hipótese não prevista em lei um dispositivo legal relativo a caso semelhante”.

[12] Atente-se ao fato de o legislador revogou o art.2144 e passou a considerar estupro não somente a pratica da conjunção carnal, mas qualquer outro ato libidinoso diverso. Não há mais necessidade de utilização da analogia para obter a permissão para a realização do aborto, uma vez que toda a gravidez decorrente de ato libidinoso não consentido configurará o delito de estupro, com a nova redação dada pela Lei 12.015/2009.

[13] Plasmado no art.º doCódigo Penall, prevê que “Não há crime sem lei anterior que o defina; não há pena sem prévia cominação legal”. Importante frisar, para o correto alcance do seu sentido no texto, que estaria o interprete atuando como legislador positivo acaso operasse analogia in malem partem, porquanto, se o fizesse, estaria ampliando a cobertura legal, sendo que a lei penal tem aplicação restrita, em decorrência do princípio da taxatividade, entendido doutrinariamente como sub-princípio da legalidade no âmbito penal. Previsto também no art. , XXXIX da Constituição consagrado pelo brocardo nullum crimen nulla pena sine lege;

[14] Note-se que no âmbito do direito processual penal a analogia em malam partem é admitida, vide NUCCI (2014, p. 28):”No processo penal, a analogia pode ser usada contra ou a favor do réu, pois não se trata de norma penal incriminadora, protegida pelo princípio da reserva legal, que exige nítida definição do tipo em prévia lei.

[15] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Impetus. 2004, p. 47.

[16] In Comentários sobre a Lei n.º13.1422/2015, uma nova qualificadora para o crime de homicídio. Consultor Jurídico, julho de 2015. http://jus.com.br/artigos/40866/comentarios-sobrealei-13-142-2015-uma-nova-qualificadora-paraocrime-de-homicidio. Data de acesso: 22/11/2015.

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